Mais de 50 organizações emitem nota contra o anteprojeto que autoriza a mineração em Terras Indígenas
Confira o Texto Integral da Nota
“No dia 14 de fevereiro o Gabinete do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes publicou decisão que inclui uma minuta de Anteprojeto de Lei Complementar que, entre outras coisas, autoriza a mineração em Terras Indígenas (TIs).
A elaboração do documento se deu no contexto dos debates que ocorrem no STF sobre a “Tese do Marco Temporal”. Em setembro de 2023, o Tribunal rejeitou que existisse um eventual marco temporal para demarcação de Terras Indígenas. Em reação, o Congresso Nacional publicou a chamada “Lei do Marco Temporal” (Lei 14.701/2023), que contrariava a decisão da Corte. Logo em seguida foram apresentadas diferentes Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a nova lei. Gilmar Mendes, em abril de 2024, suspendeu os processos judiciais e propôs uma Câmara de “Conciliação”. O desenho da Câmara garantia uma participação minoritária dos Povos Indígenas e estabelecia que as decisões seriam tomadas por maioria. Por considerar que tal procedimento desrespeitava seus direitos, grupos que representavam os indígenas se retiraram da Câmara em agosto de 2024. As reuniões continuaram desde então, à revelia de representantes dos movimentos e associações indígenas.
A Câmara de “Conciliação” foi criada motivada pelas ações sobre a Lei 14.701/2023, que tem como centro a demarcação das TIs e a “Tese do Marco Temporal”. A liberação da mineração em TIs é fruto de manobras do Centrão e do lobby do setor mineral. Entre as ações de inconstitucionalidade propostas, o Partido Progressista (PP) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 86) que requeria, entre outras coisas, que o STF criasse dispositivos relativos à pesquisa e lavra mineral. Ao mesmo tempo, algumas das propostas incorporadas ao documento foram feitas por Luís Inácio Lucena Adams que, além de representar o PP na Câmara de “Conciliação”, também advoga para a mineradora Potássio do Brasil. Essa combinação de fatores levou à inclusão desse “jabuti” na minuta de norma elaborada por Gilmar Mendes.
Gilmar Mendes encampou de tal forma o discurso a favor da mineração em TIs que em uma proposta que deveria ser sobre a “Tese do Marco Temporal”, aproximadamente um terço dos artigos estão vinculados à regulamentação da mineração. O texto foi apresentado em uma sexta-feira (14/02) para ter sua discussão iniciada às 9:00 da manhã da segunda-feira seguinte. Além de não criar condições para um diálogo com as entidades de representação dos Povos Indígenas, como denunciado pelo Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o cronograma imposto restringiu significativamente o tempo para que elas pudessem analisar o documento.
Apesar do texto refutar a “Tese do Marco Temporal” (art. 4º) , que já era a posição consolidada dentro do STF, ele faz uma série de concessões ao agronegócio e ao setor mineral, que poderão inviabilizar a demarcação de novas Terras Indígenas no futuro, e enfraquecer significativamente a proteção das TIs demarcadas.
Por exemplo, em seu art. 6º, o documento afirma que se a demarcação for “contrária ao interesse público”, ela poderá ser rejeitada pelo Ministro de Estado de Justiça e Segurança Pública, sendo também prevista a possibilidade da transferência dos indígenas para outras áreas. Ao mesmo tempo, em seu art. 21, o documento arbitra que a “exploração de recursos minerais estratégicos” constituiria atividade de “interesse público”. Considerando que a Resolução 02/2021 do Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos estabelece critérios muito amplos para definir o que são minerais estratégicos, incluindo qualquer minério que seja exportado, como ferro, ouro ou bauxita, a norma abre a possibilidade que o fato de existir pedidos de pesquisa mineral em determinada área seja estabelecido como de “interesse público” e assim, sirva como argumento para impedir a demarcação, mesmo após os estudos e laudos técnicos elaborados pela Funai.
Vale mencionar que sob a presunção de que a atividade minerária é estratégica e de utilidade pública, medidas favoráveis ao setor mineral têm sido recorrentemente implementadas pelo Estado a despeito de impactarem os direitos territoriais, também definidos como de interesse público. Na prática, essa presunção confere ao setor mineral privilégios e tratamentos excepcionais que possibilitam que seus interesses se sobreponham a direitos coletivos. Direitos que, quando assegurados, como é o caso dos direitos territoriais de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, geram benefícios não apenas aos seus titulares, como a toda sociedade[1].
Também tem sido recorrente que, perante o sistema de justiça, coletividades que contestam e reivindicam direitos face às mineradoras sejam consideradas numa dimensão restrita de expressão de interesses particulares. Contraditoriamente a extração mineral, que é desempenhada por empresas privadas, é associada ao interesse público. O texto ora apresentado pelo ministro Gilmar Mendes reafirma essa interpretação que representa um enorme retrocesso porque amplia a desigualdade de poder entre empresas e sociedade, e corrobora para a imposição de uma ordem única sobre o interesse público, ignorando outras formas de entender o que pode ser “útil”, “estratégico” para os povos e comunidades ou para o bem comum dessas e das gerações futuras.
Além disso, o texto possui diferentes artigos que desrespeitam acordos e normas internacionais referentes aos direitos dos Povos Indígenas. Por exemplo, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas define que “os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados […] a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem. Contudo, a minuta apresentada estabelece que “[caso] a manifestação da comunidade indígena seja contrária à intervenção, o excepcional prosseguimento da atividade, obra ou instalação deverá ser circunstanciadamente fundamentado em relevantes razões de interesse público e no princípio da proporcionalidade, com a demonstração da sua imprescindibilidade” (art. 31).
De forma semelhante, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) define que na aplicação da legislação nacional aos Povos Indígenas deverão ser levados em conta seus costumes e eles deverão ter o direito de conservar suas instituições próprias. Todavia, a proposta elaborada por Gilmar Mendes se inspira no Projeto de Lei sobre Mineração em Terras Indígena do governo de Jair Bolsonaro (PL 191/2020) e cria um “Conselho Curador” para deliberar sobre parte da renda mineral que será destinada aos Povos Indígenas. Desrespeitando qualquer aspecto relativo às instituições indígenas, o texto arbitra tamanho, representatividade, forma de escolha e duração de mandato deste Conselho.
Nos últimos anos, o ministro Gilmar Mendes tem mantido um contato regular com o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM). O presidente do IBRAM, Raul Jungmann, participou do “Fórum de Lisboa”, evento organizado por Gilmar Mendes e conhecido como Gilmarpalooza, nas edições de 2022, 2023 e 2024. Mantendo o princípio da reciprocidade, o ministro do STF esteve presente na Conferência “Amazônia e novas Economias”, promovida pelo IBRAM em 2023 e, no evento “Segurança Jurídica e a competitividade da mineração brasileira”, organizado pelo Correio Brasiliense, com apoio do IBRAM[2], no ano seguinte.
De forma geral, posições de ministros do STF sobre mineração em TIs parecem estar sendo orientadas pelo “senso comum” de que a mineração legal em larga escala poderá coibir a mineração ilegal em TIs e ser realizada sem causar danos sociais e ambientais.
Por exemplo, em seu voto sobre a “Tese do Marco Temporal” de setembro de 2023, quando o ministro Dias Toffoli determinou que o Congresso legislasse em até 12 meses sobre exploração econômica em TIs, ele afirmou “A ausência da regulamentação não impediu o avanço da exploração ilegal nas terras indígenas, como vimos na terra Ianomami, o que subtrai riquezas e inúmeros direitos dos povos indígenas.”
Do ponto de vista dos danos ambientais, o texto apresentado por Gilmar Mendes estabeleceu que, atividades consideradas potencialmente poluidoras devem ser precedidas de licenciamento ambiental; porém abriu exceção para empreendimentos considerados de “baixo impacto ambiental” (art. 22). Como há normas estaduais e federais que definem a pesquisa mineral como “atividade de baixo risco”, o texto abre espaço para que empresas de prospecção mineral desenvolvam atividades em TIs sem passar por processos de avaliação de impacto ambiental.
Tais premissas, porém, se mostram desconectadas da realidade.
No caso da relação entre a mineração em larga escala e a mineração ilegal, deve ser levado em conta que a abertura de grandes minas promove a criação de infraestrutura (rodovias, aeroportos, armazéns etc.) que facilita a instalação e a manutenção da mineração ilegal. Também deve ser considerado que a mineração atrai muitos trabalhadores temporários. Na Venezuela, quando houve a redução das atividades de mineradoras na região de Ciudad Guayana, muitos dos trabalhadores demitidos passaram a se dedicar à mineração ilegal.
No Brasil, há projetos de larga escala, como a mina Palito da Serabi Gold Mine, que “co-existem” a poucos quilômetros da extração ilegal de minerais. Um caso emblemático foi o da mineradora Nexa Resources que, em 2020, precisou do apoio da Agência Nacional de Mineração (ANM), para firmar um acordo com garimpeiros que atuavam dentro de sua área outorgada no Mato Grosso. Como resultado do acordo, foi permitido que os garimpeiros atuassem na superfície, enquanto a mineradora operava uma mina subterrânea.
Quanto aos impactos ambientais e sociais da mineração em TIs e aos processos de Consulta Prévia, experiências em outros países mostram o quanto a mineração pode ser danosa[3]. Por exemplo, na Austrália há pelo menos 300 acordos entre Povos Aborígenes e empresas mineradoras; em termos gerais, alguns desses acordos geraram benefícios econômico limitados, mas exigiram que as comunidades abrissem mão de seus direitos territoriais e geraram pouco ou nenhum avanço em termos de proteção ao patrimônio ou de gestão ambiental[4]. No Canadá, os processos de Consulta Prévia se caracterizarem por atividades meramente informativas, uma vez que há pouco tempo para discussão e oportunidades restritas para as Nações Indígenas manifestarem suas posições; ainda, há uma clara desigualdade na correlação de forças na negociação[5]. Nos EUA, existe entre os Povos Indígenas muitas suspeitas sobre a atuação das corporações mineradoras por elas atuarem em locais remotos e manterem relativo segredo sobre suas operações, além disso há situações de cooptação de lideranças indígenas[6].
A regulamentação da mineração em TIs é um tema complexo e que envolve vários níveis de análise. A proposta apresentada pelo Ministro Gilmar Mendes demonstra, na melhor das hipóteses, um conhecimento superficial do tema e não dá conta de lidar com todos os potenciais danos que podem surgir.
A elaboração de qualquer norma sobre esse assunto somente pode ser feita por meio de intenso diálogo com as entidades representativas do Povos Indígenas, o que não ocorreu neste momento. Além disso, a junção deste tema ao debate da “Tese do Marco Temporal” pouco contribui para se chegar a uma posição que garanta o respeito aos direitos indígenas. Dessa forma, a única alternativa que se coloca é excluir o debate das atividades econômicas em TIs da minuta apresentada. Tal discussão deve ser feita, seguindo os acordos internacionais vigentes e respeitando as instâncias de decisão dos Povos Indígenas.
Brasília, 18 de Fevereiro de 2025
Assinam a Nota:
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Ação Franciscana de Ecologia e Solidariedade (AFES)
Amazon Watch
ANMIGA
ArpinSul
ArpinSudeste
Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)
Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale
Associação Indígena Pariri
Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA)
Associação de Favelas S.J Campos
APOINME
Célia Xakriaba (Deputada Federal)
Centro Palmares de Estudos e Assessoria por Direitos
Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Pe.Josimo
Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração
Comissão Pastoral da Terra MG (CPT-MG)
Comissão Pastoral da Terra Regional Pará (CPT – PA)
Comissão Pro-Índio de São Paulo
Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag)
Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira SP/PR (EAACONE)
FASE
Federação Nacional das Assistentes Sociais
Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas
Fórum da Amazônia Oriental (FAOR)
Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense (FMAP)
Fórum de Mulheres de Imperatriz e Região Tocantina do Maranhão
Fórum Brasileiro de ONGS e Movimentos Sociais (FBOMS)
Fórum Maranhense de Mulheres
Fórum Nacional de Luta pela Mineração Responsável (FONAMIR)
Grupo Política, Economia, Mineração Ambiente e Sociedade (PoEMAS)
Grupo de Estudos em Educação e Meio Ambiente (GEEMA)
Grupo de Moradores da Avenida João XXIII, contra a siderúrgica TERNIUM BRASIL (TKCSA) Santa Cruz-Rio de Janeiro
Grupo de Pesquisa: Movimentos Sociais, Educação e Cidadania na Amazônia (GMSECA/UEPA)
Instituto Lilar
Instituto Pacs
Instituto de Análises Sociais e Econômicas (IBASE)
Instituto Cordilheira
Justiça Global
Justiça nos Trilhos
Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)
Movimento Xingu Vivo para Sempre
Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Altamira Campo e Cidade
Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD)
Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil
Observatório da Mineração
Processo de Articulação e Diálogo (PAD)
Projeto Aldeias
Projeto de Olho na CFEM
REPAM
Rede Iglesias y Mineria
Rede Brasileira de Justiça Ambiental
Rede Brasileira de Educação Ambiental
Rede de Mulheres Ambientalistas da América Latina (ELO Brasil)
Rede Nacional de Mulheres Guardiãs de Territórios Ameaçados e Atingidos por Megaprojetos
Rede dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil (Rede PCTS)
Rede Jubileu Sul Brasil
Sindicato das Assistentes Sociais do Estado do Maranhão (SASEMA)
SINFRAJUPE
Teia de Envolvimento Humano e Ambiental (TEHA )
——
[1] Ver Oviedo, A.; Doblas, J. (2021). Efetividade dos territórios tradicionalmente ocupados na manutenção da cobertura vegetal natural no Brasil. In: Cunha, M.C.; Magalhães, S. B.; Adams, C. (org). Povos tradicionais e biodiversidade no Brasil: contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a biodiversidade, políticas e ameaças. São Paulo: SBPC.
[2] O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em sua Resolução 226/2016 define que cabe ao juiz zelar para que a sua participação em eventos como palestras e conferências “não comprometa a imparcialidade e a independência para o exercício da jurisdição”. Porém, o CNJ não possui competência sobre o STF e seus ministros.
[3] Para uma análise mais detalhada de experiências internacionais de minerção em Terras Indígenas ver Milanez, B. (2020) A fumaça dos minérios: experiências internacionais de mineração em Terras Indígenas. Versos – Textos para Discussão PoEMAS, 4(1), 1-58.
[4] O’Faircheallaigh, C. (2006). Aborigines, mining companies and the state in contemporary Australia: A new political economy or ‘business as usual’? Australian Journal of Political Science, 41(1), 1-22.
[5] Sosa, I., e Keenan, K. (2001, Out). Impact benefit agreements between aboriginal communities and mining companies: their use in Canada. Canadian Environmental Law Association Ottawa.
[6] Ali, S. H. (2003). Mining, the environment, and indigenous development conflicts. Tucson: The University of Arizona Press.
Com informações do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração