GUARANI: MBYA E TUPI
O povo indígena Guarani está localizado em cinco países sul-americanos: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia. Não há um censo absoluto capaz de contabilizar exatamente a população Guarani na América do Sul. A estimativa do Conselho Indigenista Missionário é de que sua população seja de 225 mil pessoas.
Em nosso país, essa população está em torno de 67.523 indígenas (IBGE, 2010) distribuídos principalmente nas regiões Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná), Sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo) e Centro-Oeste (Mato Grosso do Sul). Trata-se de uma das maiores populações indígenas do país, representando mais de 7% dos 896.917 existentes em território nacional (IBGE, 2010). Em São Paulo, a sua população é de 4.138 pessoas.
Os Guarani que vivem no Brasil se dividem em três subgrupos: Ñandeva, Kaiowá e Mbya. Tal classificação foi adotada nos anos 1950 pelo antropólogo Egon Schaden e está pautada, sobretudo, em suas observações sobre as diferenças no dialeto, nos costumes e nas práticas rituais entre este povo. Tal classificação é, atualmente, a mais adotada, embora em muitos casos não corresponda aos etnônimos utilizados pelos próprios Guarani para se autodefinirem. Assim, por exemplo, na região da tríplice fronteira entre Brasil (oeste paranaense), Paraguai e Argentina, há grupos que se autodenominam Avá-Guarani e, em São Paulo, existem grupos que se definem como Tupi.
Os Ñandeva vivem no Mato Grosso do Sul e também no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Paraná e em São Paulo. Já os Kaiowá estão concentrados principalmente no estado de Mato Grosso do Sul, embora sua presença também possa ser encontrada no Paraná. Por sua vez, os Mbya habitam as regiões Sul e Sudeste, principalmente São Paulo e Santa Catarina. Nestas regiões, eles também dividem terras indígenas com outros povos, sobretudo os Kaingang. Além disso, na Terra Indígena Xamboiá, no Tocantins, coabitam indígenas Guarani Mbya e Karajá; e na Reserva Indígena Nova Jacundá, localizada no Pará, vivem os Guarani Mbya.
AS TROCAS E FLUXOS POPULACIONAIS: O MOVIMENTO GUARANI
Um dos elementos que mais chama a atenção nas práticas sociais do povo Guarani é a intensa rede de trocas e fluxos populacionais entre as aldeias distribuídas por uma extensa região no sul do continente. As diversas terras Guarani não estão isoladas, mas interligadas por redes de parentesco e reciprocidade. Os Guarani “mantêm entre si estreitas e intensas relações políticas, matrimoniais, religiosas e econômicas. Seus moradores vivem em constantes visitas uns aos outros. A população Guarani, apesar de se fixar durante períodos de até vários anos em determinadas aldeias, circula entre diferentes áreas, e dificilmente se encontram numa família pessoas que não conheçam ou não tenham vivido em outras aldeias” (Nimuendajú, 1987).
Para a antropóloga Elizabeth Pissolato (2007), o movimento, para os Guarani, é o que produz condições de vida consideradas boas, favoráveis. Ele é expressão de uma maneira própria de conceber o território, para além da lógica da terra indígena estabelecida pelo Estado, em um amplo circuito de espaços nos quais ocorre intensa circulação, tanto de pessoas como de plantas, matérias-primas, sementes etc.
Como observam Brighenti e Nötzold (2009), o território Guarani (Ywy Rupá) foi cortado e recortado pelas fronteiras nacionais, dos estados, províncias e municípios. Essa divisão faz parte da história recente, mas os Guarani já deram mostras que querem continuar circulando livremente por seu território.
O TEKOA
Outro aspecto da territorialidade Guarani diz respeito ao conceito de tekoa, “o lugar onde é possível realizar o modo de ser Guarani” (Ladeira, 1992). Segundo explica Brighenti (2005): “O tekoha, para o Guarani, talvez seja a síntese da concepção e da relação que esse povo mantém com o meio ambiente. No plano físico poderíamos dizer que o tekoha é a aldeia, é o lugar onde a comunidade Guarani encontra os meios necessários para sua sobrevivência. É a conjugação dos vários espaços que se entrecruzam: o espaço da mata preservada onde praticam a caça ritual; espaço da coleta de ervas medicinais e material para confeccionar artesanatos e construir suas casas; é o local onde praticam a agricultura; é também um espaço sócio político, onde constroem suas casas de moradias, a casa cerimonial/Opy, o pátio das festas, das reuniões e do lazer. Não é possível conceber o tekoha sem a composição dos espaços, ou apenas um dos espaços; nesse caso, não poderão viver a plenitude e assim se quebra a relação que mantém com o meio, produzindo o desequilíbrio”.
Os elementos indispensáveis ao tekoa são uma região de mata preservada (necessária à caça, coleta e perambulação), uma área cultivável para as plantações; e, por fim, o espaço social da aldeia, onde ficam as casas de moradia e de reza (opy) (Brighenti, 2001).
A construção de um tekoa se faz no período de “quatro voltas da Lua” (quatro luas-novas). Esse é o tempo necessário para se preparar terra e plantar, colher o milho novo, fazer novas casas, criar um lugar à semelhança do original. E este ciclo dificilmente é interrompido. A abundância não está relacionada à quantidade, mas sim à qualidade do tekoa, que deve levar em consideração o contato com a natureza.
Neste contexto, o tekoa é o modo de ser dos Guarani, a forma como atendem às prerrogativas de origem. O modo como vivem conforme suas regras, próximos da Natureza. Os Guarani consideram que o ser humano é parte do todo, nem inferior nem superior aos demais seres que compõem a natureza devendo manter-se em permanente harmonia com a Natureza e em profundo estado de respeito, utilizando-a de maneira equilibrada (Brighenti, 2005).
É por esse motivo que os Guarani preferem as terras litorâneas, onde ainda há trechos de Mata Atlântica preservada. Porque só quando estão próximos da floresta é que se tornam capazes de construir um bom Tekoa.
Nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, os Guarani habitam principalmente territórios próximos ao litoral. A Mata Atlântica tem especial importância para este povo, principalmente para aqueles do subgrupo Mbya. Estes acreditam que a Mata Atlântica é um local privilegiado para a busca de espaços sagrados de convivência (os Ivy marãey ou Terra sem mal).
A IMPORTÂNCIA DO PAJÉ
O pajé é extremamente importante na estrutura social Guarani. É ele quem, por excelência, realiza a importante mediação entre os homens e o mundo sobrenatural. Não que ele seja o único a fazer tal mediação. Os saberes da pajelança são indeterminados, sem fins específicos, e se encontram distribuídos entre todos os Guarani em graus diferentes e com propriedades distintas.
Todos têm suas rezas, seus cantos, sua relação própria com o cosmos, mas é o pajé o maior conhecedor dessa relação, o maior conhecedor do mundo sobrenatural. Ele é uma pessoa a quem se pode recorrer para a resolução de impasses complexos. Para atingir esse status, este alto grau de perfeição, é preciso que os pajés sejam capazes de dirigir a cerimônia Ñemongaraí (Nimuendajú, 1987, p.75).
Hélène Clastres identifica historicamente entre os Guarani a existência dos Caraí, que são muito mais que pajés. Segundo ela, os Caraí viviam afastados das aldeias e nunca residiam com os demais (inclusive os chefes políticos). Isolados, eles adquiriam um status à parte na vida Guarani: não pertenciam a nenhuma comunidade, não eram de lugar algum. Em certos momentos, se dirigiam às aldeias, por pouco tempo, para realizarem longos discursos.
Poderiam percorrer qualquer aldeia, inclusive as inimigas de seu grupo de origem. Os Caraí, por sua vida à parte, tinham uma posição singular na organização social Guarani: eram exteriores à aliança política e aos vínculos de parentesco.
Em muitos casos, eram vistos como heróis culturais reencarnados. Eram verdadeiros homens-deuses. Hélène Clastres descreve que, nas aldeias visitadas, “varria-se o chão que o Caraí iria pisar, às vezes chegava-se até mesmo a tomar precauções para que ele nem o tocasse” (1978, p.44). Os Caraí eram profetas. Só eles seriam capazes de mobilizar um grupo a sair de suas comunidades, largar para trás suas roças, toda a vida social para partirem em busca da “Terra sem Mal”.
BIBLIOGRAFIA
__ Integração e desintegração: análise do tratamento dispensado pelos Estados brasileiro e argentino ao povo Guarani de Santa Catarina e da província de Misiones. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2001.
__ “Necessidade de Novos Paradigmas Ambientais Implicações e Contribuição Guarani”, Cadernos PROLAM/USP (ano 4 – vol. 2 – 2005), p. 33-56.
CLASTRES, Helène.
__ Terra sem mal: o profetismo Tupi-Guarani. São Paulo: Brasiliense, 1978.
LADEIRA, Maria Inês.
__ Caminhar sob a luz: território Mbya à beira do oceano. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais. PUC-SP. São Paulo, 1992.
NIMUENDAJU, Curt.
__ As Lendas da Criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos apapocúva-guarani. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1987.