INDÍGENAS NA CIDADE

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A ideia usual que a maior parte da população indígena vive em áreas rurais remotas não corresponde à realidade. Dados da Organização das Nações Unidas indicam que em alguns países, como Austrália, Canadá, Estados Unidos e Chile, a maior parte da população indígena vive em cidades (UN-HABITAT, 2011). Em 2000, a população indígena na América Latina era de 30 milhões de pessoas, sendo que 12 milhões viviam em áreas urbanas. No Brasil, os dados do Censo de 2010 indicavam que 36,2% da população indígena residia na área urbana e 63,8% na rural. No Estado de São Paulo, os dados do Censo de 2010 apontavam uma população indígena de 37.915 indígenas vivendo em cidades.

A existência de indígenas nas cidades decorre de duas razões principais: do movimento de migração das terras de origem para as cidades ou do crescimento das cidades que acabam alcançando as terras indígenas que passam a integrar a área urbana. Em São Paulo encontramos os dois tipos de situação: duas Terras Indígenas Guarani localizadas na zona sul e oeste (Terras Indígenas Jaraguá e Tenondé Porã). E uma grande população indígena distribuída por diversos bairros da Grande São Paulo constituída por famílias que migraram de suas terras de origem de diversas regiões do país, mas principalmente do nordeste. São diversas as dificuldades enfrentadas pela população indígena em São Paulo. Além dos problemas encontrados pela população das periferias de forma geral (como falta de emprego, condições precárias de moradia, violência, falta de assistência à saúde), também enfrentam problemas específicos, como a invisibilidade perante a sociedade em geral, a desconsideração do poder público, o questionamento de suas identidades étnicas e a falta de um espaço coletivo para suas manifestações culturais.

A DECISÃO DE DEIXAR A ALDEIA

São diversas as motivações para que famílias inteiras deixem suas terras de origem e venham tentar a sorte em São Paulo: as disputas envolvendo as terras indígenas, escassez de terras produtivas, a falta de trabalho e a busca por melhores oportunidades para estudo ou atendimento à saúde.

“Os posseiros mataram meu pai, que foi quem começou aquele conhecimento da aldeia. Mataram meu pai. Eu mesma fiquei desgostosa e vim embora para cá (…). Meu pai viajava, ele ia pra Brasília. Ele que ajeitava os índios e aconselhava todo mundo. Aí os posseiros ficaram com raiva e mataram ele.” Alaíde, índia Pankararé (Bahia).

“Eu não queria que eles [meus filhos] passassem pelo que eu passei. Vivendo de roça, trabalhando em cima das serras, sendo que as terras melhores os posseiros que tinham. Então chega uma hora que a gente planta e vê morrer por causa do sol. Aí a gente cai em desespero. E é obrigado a tentar a sorte na terra dos outros” Bino do povo Pankararu (Pernambuco).

“A gente procurou escola. Em nossa aldeia não tem o Segundo Grau. O Primeiro Grau tem. Agora, chegou no Segundo Grau, o pessoal tem que ir pra cidade. E qual cidade que dá mais acolhimento pro pessoal? Seria São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, e outras grandes cidades”, Sátiro, povo Terena (Mato Grosso do Sul).

A RELAÇÃO COM A TERRA DE ORIGEM

Diversas famílias indígenas que vivem na Grande São Paulo mantêm frequente contato com suas aldeias de origem. Apesar de viverem na cidade há bastante tempo, os Terena não perderam o contato com a aldeia de origem em Mato Grosso do Sul: “Toda semana nós nos falamos. É pelo telefone, pela carta, pela visita de algum irmão de lá pra cá, daqui pra lá…” Sátiro Terena.

Muitos dos Fulni-ô e dos Kariri-Xocó que vivem em São Paulo retornam a suas aldeias pelo menos uma vez por ano, na época do principal ritual religioso de seu povo, o Ouricuri. “Todo ano eu vou lá na aldeia. Esse ano eu fui duas vezes. Em janeiro estamos indo de novo. Temos obrigação por lá, temos um ritual a cumprir [ritual do Ouricuri]. É uma obrigação nossa que faz parte de nosso segredo, da nossa cultura. O índio tem obrigações dentro da sua aldeia. Ele não pode se afastar completamente. Se ele se afasta, é porque não tem conhecimento dos seus valores. Nós aprendemos os valores de dentro da cidade, mas não esquecemos os valores de dentro da aldeia” relata Aporã do povo Kariri-Xocó (Alagoas).

O ritual do Ouricuri é realizado por diversos grupos indígenas da Região Nordeste. Em sua aldeia de origem, os Fulni-ô realizam o ritual do Ouricuri anualmente, durante os meses de setembro a novembro. Um dos eventos de maior importância no ritual é a eleição de suas autoridades, ou seja, o pajé e o cacique. Os Kariri-Xocó também realizam o ritual do Ouricuri uma vez por ano, durante um período de cerca de 15 dias nos meses de janeiro e fevereiro. Tanto para os Fulni-ô como para os Kariri-Xocó o ritual do Ouricuri é um importante marcador étnico, pois participar dele desde os primeiros anos de vida é uma das condições para ser considerado Kariri-Xocó ou Fulni-ô.

OS PANKARARU

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Os Pankararu são originários do sertão pernambucano onde vivem em duas áreas indígenas contiguas: a Terra Indígena Pankararu e a Terra Indígena Entre Serras, somando pouco mais de 14.000 hectares. Na região metropolitana de São Paulo, os Pankararu somam atualmente quase 2.000 pessoas cadastradas informalmente pela Associação SOS Pankararu, mas há ainda outro contingente não identificado. A partir dos anos 1950, e principalmente 1960 e 1970, assim como muitos nordestinos, os Pankararu também foram atraídos para a cidade de São Paulo a fim de tentarem uma vida melhor, uma garantia de emprego e uma oportunidade de dar aos filhos educação e maiores chances de profissionalização. Entre 1960 e 1970, grande parte da população masculina Pankararu migrou para São Paulo, atraída pela grande oferta de mão de obra na construção civil (Albuquerque, 2011). Os Pankararu, além da aldeia em Pernambuco e da população em São Paulo, também estão morando de forma comunitária na cidade adjacente à aldeia, em Petrolândia onde constituíram uma associação que tem mais de 200 membros. Há ainda cerca de 300 Pankararu vivendo no estado de Tocantins, e no sul de Minas Gerais, na comunidade de Coronel Murta, vivem cerca de 60 pessoas (idem).

O antropólogo Marcos Albuquerque relata a história da vinda para São Paulo: “Em São Paulo os primeiros Pankararu que chegaram não tinham instrução formal e tornaram-se trabalhadores braçais. A maioria trabalhava nas equipes de desmatamento da Cia. De Luz do Estado para onde eram agenciados por ―”gatos” que iam buscá-los na própria aldeia, para entregá-los em lotes, ao ―empreiteiro das obras (Albuquerque, 1999: 267).

Uma boa parte dos Pankararu trabalhou na construção do estádio de futebol Cícero Pompeu de Toledo (o Estádio do Morumbi). Próximo ao local dos alojamentos, alguns trabalhadores começaram a se apossar de partes do terreno às margens do rio Pinheiros que eram de utilidade pública, “sobras” do loteamento do bairro e destinadas à construção de benfeitorias públicas que nunca chegaram a termo, formando assim uma “favela”, inicialmente chamada de ―favela da “mandioca” e posteriormente com o nome do bairro, “favela do Real Parque”. Foi nesse contexto que grande número de Pankararu acabou construindo um endereço fixo em São Paulo o que possibilitou a vinda de parentes formando, assim, uma migração constante para São Paulo, normalmente intercalada entre grandes períodos de trabalho em São Paulo e breves retornos à aldeia em Pernambuco” (Albuquerque, 2011: 24-25).

Os Pankararu no Real Parque somam 170 famílias e estão organizados na Associação Indígena SOS Comunidade Pankararu. Como fruto de sua organização, os Pankararu conseguiram a sua inclusão, em 2000, no programa de verticalização de favelas da Prefeitura de São Paulo que reservou duas unidades habitacionais exclusivamente para os indígenas, beneficiando 25 famílias. Segundo a líder Dora Pankararu, no entanto, o programa habitacional foi insuficiente, uma vez que atendeu um pequeno número de famílias. Dora lembra também que não foi construído nem um centro cultural, nem um local sede para a associação SOS Pankararu. Outra conquista importante foi a criação, em 2006, de uma unidade do Programa de Saúde da Família (PSF) voltada à população indígena do Real Parque que é chamada, pelos indígenas de “PSF – Pankararu” (Chiquetto, 2012). A unidade é formada por dois auxiliares de enfermagem, dois agentes indígenas, uma enfermeira e um médico e está situada na Unidade Básica de Saúde (UBS) que atende a todos os moradores do Real Parque.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, Marcos Alexandre S. O Regime Imagético Pankararu (Tradução Intercultural na Cidade de São Paulo), dissertação de doutorado. Universidade Federal de Santa Catarina, 2011.
____ “Os Pankararu e o Associativismo Indígena na Cidade de São Paulo”, Tellus, ano 9, n. 16, p. 229-235, Campo Grande – MS jan./jun. 2009
CHIQUETTO, Rodrigo Valentim, “Relatório de políticas públicas – São Paulo”, Comissão Pró-Índio de São Paulo, São Paulo: abril de 2012
COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO, Índios na Cidade de São Paulo, São Paulo: CPI-SP, 2005.
IBGE, Censo Demográfico 2010. Características gerais dos indígenas Resultados do universo, Rio de Janeiro: IBGE, 2012
____ Indígenas, 2012
UN-Habitat. Securing Land Rights for Indigenous Peoples in Cities, 2011
____   Urban Indigenous Peoples and Migration, 2009

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