Apesar de ter sido criado para combater o desmatamento, instrumento é utilizado para legitimar a ocupação irregular de terras, enquanto comunidades enfrentam dificuldades para obtê-lo e acessar políticas públicas

Comunidade quilombola Arapucu, em Óbidos, Pará
Comunidade quilombola Arapucu, em Óbidos, Pará. Foto: Catarina Soares Franco

O Cadastro Ambiental Rural (CAR) foi tema da mais recente oficina virtual promovida pela Comissão Pró-Índio de São Paulo para 14 lideranças quilombolas e ribeirinhas de Oriximiná e Óbidos, no norte do Pará. O encontro, realizado no dia 10 de agosto, contou com apresentação de Pedro Martins, advogado da ONG Terra de Direitos, e teve como objetivo tirar dúvidas e esclarecer possibilidades para o uso desse instrumento de mapeamento de imóveis rurais.

O CAR foi instituído como instrumento pelo Código Florestal em 2012 (Lei 12.651/2012). A ideia que embasou sua criação, diz Pedro Martins, era poder apontar mais rapidamente os culpados pelo desmatamento ilegal, por meio de um sistema virtual unificado de cadastrado de propriedades. “Toda vez que uma área cadastrada tivesse desmatamento, apareceria um alerta para a fiscalização”, explicou o advogado, cuja organização atua desde 2013 ajudando as comunidades tradicionais a regularizar seu CAR.

CAR: acesso difícil para quilombolas e ribeirinhos, recurso rápido para fazendeiros

O advogado da Terra de Direitos explica que, embora o Cadastro Ambiental Rural tenha sido pensado para facilitar a rastreabilidade dos crimes ambientais, o seu desenho institucional acaba deixando-o mais acessível para imóveis individuais do que para os territórios coletivos. Inclusive porque, sem o auxílio direto das autoridades para ajudar no cadastramento, consegue o CAR primeiro quem tem recursos suficientes para pagar um técnico que consiga fazer essa inserção no sistema virtual – o que muitas vezes não sai barato.

“Os fazendeiros conseguiram sair na frente das comunidades tradicionais, que até hoje têm dificuldades de se inscrever no CAR e acessar políticas públicas através dele. Isso diz muito sobre a forma de inserção dessas informações nesse sistema cadastral. Porque o cadastro em si seria até muito positivo, um grande mapa com as informações possessórias do país inteiro. Mas se já existe um caos fundiário no Brasil, o CAR vai ser reflexo desse caos, e os conflitos estarão ali presentes”, explica.

Projetos de lei que visam flexibilizar a legislação ambiental podem piorar ainda mais esse cenário. Como o PL 2633/20, chamado por muitos de “PL da Grilagem”, que amplia o tamanho das propriedades rurais que poderão ser regularizadas sem verificação do Incra, e admite o CAR como comprovação de posse do território, ainda que esse instrumento seja um “instrumento super precário” para este fim, como defende Pedro Martins.

“Na hora da validação (do CAR), os fazendeiros usam algum documento de posse que não era verificado a fundo pelo órgão ambiental, porque também não é função desse órgão aferir validade de documentos fundiários. Então é todo um conjunto de informações e procedimentos que juntam o fundiário com o ambiental, e o CAR acaba se tornando mais um objeto desses conflitos. Ainda que o Código Florestal vede o uso do CAR para fins fundiários, ele acaba sendo a expressão do uso da terra”, diz o jurista.

Prejuízos às comunidades

Conseguir a inscrição no Cadastro Ambiental Rural é importante para que as comunidades possam acessar políticas públicas, explicou Pedro. Qualquer atividade que dependa do licenciamento ambiental, por exemplo, depende da obtenção do CAR. Ou mesmo outras mais simples, como obter a Guia de Transporte Animal (GTA), no caso das comunidades que têm pequenas criações de boi.

O problema é que o uso do CAR por essas comunidades não é tão simples – o que ficou evidente nas dúvidas apontadas pelas lideranças presentes.

Exemplo dessa dificuldade foi o caso, levantado durante a oficina, envolvendo a comunidade Muratubinha, que tem seu território em uma área de várzea e precisa transportar os animais. Liderança da comunidade, Raimundo “Galo” Ramos lamenta o impasse vivido pelos quilombolas, que precisam do CAR para obtenção da autorização de transporte. “O problema é que precisamos desse documento para ontem, os pastos estão acabando por causa da seca e precisa descer [o gado] para a área de várzea”, disse.

“Essa situação causa muitas dúvidas e instabilidades junto às comunidades, porque o povo necessita fazer esse tipo de transporte, continuar sua atividade, e fica na dependência desse documento”, comentou Douglas Sena, quilombola do Quilombo Arapucu e representante da Pastoral Social da Diocese de Óbidos.

Pedro Martins concordou que a situação é injusta para os quilombolas. “É direito das comunidades que o Incra faça esse cadastro. Mas ele se nega a fazer, diz que só faz das que estiverem tituladas. E é uma luta para obrigá-los a fazer de todas que têm o RTID”, disse, referindo-se ao Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, uma etapa preliminar do processo de titulação que identifica e delimita os limites dos territórios quilombolas.

Oficinas e passos futuros

A oficina virtual sobre o Cadastro Ambiental Rural foi mais uma atividade de formação oferecida pela Pró-Índio para lideranças quilombolas e ribeirinhas de Oriximiná e Óbidos. Em julho, o encontro foi para falar sobre o Plano de Manejo da Floresta Nacional Saracá-Taquera, onde se localizam várias dessas comunidades.

“A oficina para esclarecimento dos comunitários é muito interessante, para que a gente possa ter um direcionamento junto às comunidades e aos órgãos competentes, e buscar as soluções para os comunitários que necessitam dessas informações sobre o CAR”, comentou Douglas Sena.

As reuniões pela internet são uma forma de manter as comunidades informadas, mesmo em tempos de isolamento e manutenção dos cuidados com a pandemia de Covid-19. Nos próximos meses, novas formações virtuais com informações importantes para quilombolas e ribeirinhos serão promovidas pela Pró-Índio.

Texto: Rafael Faustino
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