Em artigo publicado no JOTA, Dalmo de Abreu Dallari afirma não ser “aceitável, do ponto de vista jurídico-constitucional, a promessa de suspensão dos processos de demarcação.”. Dallari é jurista, conselheiro da Comissão Pró-Índio de São Paulo e professor aposentado da Faculdade de Direito da USP.
Artigo na íntegra:
“Demarcação de áreas indígenas: obrigação jurídica nacional e internacional
Candidato Bolsonaro vem anunciando que, se eleito, suspenderá a demarcação das áreas indígenas
A demarcação das áreas indígenas é uma obrigação constitucional do governo brasileiro, sendo também uma obrigação jurídica internacional do Brasil, por força de Declarações e Acordos internacionais, aos quais o Brasil deu sua adesão ficando, portanto, obrigado a dar-lhes efetividade.
É muito importante relembrar esses compromissos jurídicos, cuja desobediência será altamente desmoralizante para o Brasil, neste momento em que, para atender aos interesses de um de seus principais financiadores, o candidato Jair Bolsonaro, do PSL, vem anunciando que, se eleito, suspenderá imediatamente a demarcação das áreas indígenas, além de adotar outras providências contrárias aos direitos dos povos indígenas expressamente consagrados na Constituição de 1988.
Com efeito, os direitos dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam estão expressa e claramente proclamados na Constituição, em vários artigos que deixam bem evidentes a situação jurídica das áreas indígenas e o dever de assegurar às comunidades indígenas a ocupação permanente dessas áreas e o usufruto de todos os recursos naturais nelas existentes.
Os índios não são proprietários dessas áreas, mas são, por força de disposição constitucional, seus ocupantes permanentes e usufrutuários dos recursos naturais nelas existentes, aí incluídos, obviamente, os recursos vegetais e animais, assim como as reservas minerais existentes no subsolo e também as águas existentes nessas áreas, incluindo as nascentes e as partes dos rios que atravessam tais áreas, bem como, do direito de pesca e de aproveitamento de outros recursos naturais existentes nos rios.
Quanto à propriedade das áreas indígenas, dispõe o artigo 20 da Constituição, com clareza e objetividade, o seguinte: “artigo 20 – São bens da União: XI. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Assim, portanto, as áreas ocupadas tradicionalmente pelas comunidades indígenas são de propriedade da União, integrando o seu patrimônio e, por isso, não sujeitas a pretensos direitos de invasores.
Mas considerando a situação especial dessas áreas e a ligação entre a ocupação indígena e os direitos de propriedade da União, dispõe ainda a Constituição, também com absoluta clareza e objetividade o seguinte: “Artigo 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam…” Na sequência desse mesmo dispositivo é acrescentada uma norma relativa à demarcação dessas terras, nos seguintes termos: “…competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Dando ainda maior ênfase a esse dispositivo, foram acrescentados sete parágrafos ao artigo 231, tratando de aspectos particulares ligados à ocupação indígena.
É conveniente e oportuno, neste momento, destacar o que dispõem dois desses parágrafos: “parágrafo 4º. As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis”; parágrafo 6º. São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo…”. Assim, pois, não tem qualquer consistência jurídica a alegação maliciosa de que o ocupante ilegal de uma área indígena não sabia que se tratava de terra dessa natureza jurídica. A posse ilegal dessas áreas não produz qualquer efeito jurídico em favor desse possuidor.
A par de todos esses dispositivos, que consagram direitos constitucionais com toda a eficácia das normas dessa natureza, tornando inconstitucional e sem eficácia jurídica qualquer lei, decreto, acordo ou ato de qualquer natureza que os contrariem, é também oportuno ressaltar o que dispõe expressamente, também com objetividade e clareza, o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.
Ora, considerando que a Constituição foi promulgada no dia 5 de Outubro de 1988, a União deveria ter concluído a demarcação de todas as terras indígenas no dia 5 de Outubro de 1993. Como é público e notório, tem havido muita interferência de poderosos grupos econômicos, inclusive por meio dos parlamentares a eles ligados, no sentido de retardar a demarcação das terras indígenas, na expectativa de uma alteração das normas constitucionais relativas às terras indígenas ou, também, para que, não havendo a demarcação, seja facilitada a invasão de uma área indígena sob pretexto de que, não estando demarcada, não se tinha conhecimento de que se tratava de terra indígena. A rigor, pode-se dizer que todos os governos federais posteriores ao início da vigência da Constituição foram omissos e deixaram de cumprir um mandamento constitucional.
Essa questão já foi suscitada publicamente e a resposta dos governantes e dos setores da administração federal encarregados da demarcação tem sido a alegação da falta de recursos financeiros. Ora, sendo uma obrigação do governo federal, na elaboração da proposta do orçamento da União e na decisão para sua aprovação uma parte dos recursos disponíveis deve ser destinada a esse fim.
Além de tudo quanto foi exposto, que deixa muito evidentes os direitos constitucionais dos índios às terras que tradicionalmente ocupam e o dever dos governos de assegurar esses direitos, é também oportuno relembrar aqui o que dispõe a “Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas”, aprovada em 13 de Setembro de 2007.
Com relação às terras indígenas, tem especial relevância o artigo 27 dessa Declaração, cuja redação é a seguinte: “Os Estados assegurarão e aplicarão, conjuntamente com os povos indígenas interessados, um processo equitativo, independente, imparcial, aberto e transparente, no qual sejam reconhecidas devidamente as leis, tradições, costumes e os sistemas de propriedade da terra dos povos indígenas, para reconhecer e adjudicar os direitos dos povos indígenas com relação às suas terras, territórios e recursos, compreendidos aqueles que tradicionalmente tenham possuído ou ocupado, ou utilizado de outra forma. Os povos indígenas terão o direito de participar desse processo”.
Em conclusão, os direitos dos povos indígenas estão consagrados na Constituição brasileira e em documentos jurídicos internacionais que o Brasil acolheu e se obrigou a respeitar e aplicar. Assim, pois, é absolutamente inconstitucional a suspensão, ou mesmo o retardamento intencional, da demarcação das terras indígenas, não sendo aceitável, do ponto de vista jurídico-constitucional, a promessa de suspensão dos processos de demarcação.
Para finalizar, é oportuno lembrar que muito recentemente o governo brasileiro recebeu uma advertência do Conselho de Direitos Humanos da ONU por descumprimento de obrigações jurídicas internacionais do Brasil nessa área. Para evitar novas advertências e o risco de ver o País figurar como réu perante uma Corte jurídica internacional, os brasileiros que desejam o Brasil efetivado e reconhecido como um Estado Democrático de Direito devem estar alertas e rejeitar qualquer proposta de redução ou negação dos direitos indígenas constitucionalmente consagrados.
Fonte: JOTA