NOSSA HISTÓRIA
Conheça um pouco da trajetória da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) desde a sua fundação em 20 de outubro de 1978 até o início dos anos 2000. Dentre as inúmeras realizações, impossível relatar todas aqui, estão as primeiras mobilizações contra a “falsa emancipação dos índios”, em 1978; a presença marcante na Constituinte, entre 1986 e 1988; a luta contra os megaprojetos hidrelétricos e a favor dos atingidos pelas barragens e a proposição de alternativas para a política energética no Brasil; a conquista da primeira titulação de terra de quilombo no Brasil, em 1995, seguida de muitas outras.
1970
Fundada de fato em 1978, a CPI-SP foi formalmente constituída em agosto de 1979.
Segundo Manuela Carneiro da Cunha, “houve uma grande mobilização.Estávamos em plena ditadura e a questão indígena foi o desaguadouro de muita coisa, de muita insatisfação. Quer dizer, a questão indígena anteriormente nunca tinha recebido tanta atenção. A gente organizou um ato público no Tuca e fizemos um monte de adesivos para carro contra a emancipação das terras indígenas. E, para o nosso grande espanto, no Tuca tinha uma multidão”.
“Quando se fez essa grande reunião no Tuca, em 78, foi uma coisa fantástica, tinha mais de 2 mil pessoas, eu acho que foi um evento assim realmente em nível nacional. Foi ali que os índios começaram eles mesmos também a aparecer. Tínhamos gente que estava ainda começando na carreira, tinha o Genuíno, tinha o Suplicy, tinha uma porção de pessoas e uma presença muito importante da Igreja, sem dúvida nenhuma, e do CIMI, Dom Tomas Balduíno. A Igreja nos deu muita proteção naquela época” completa Lux Vidal.
O governo militar ameaçava alterar a legislação para permitir a emancipação dos povos indígenas (só era possível a emancipação individual solicitada pelo próprio índio). Na verdade, o foco estava mesmo nas terras dos índios; a emancipação era uma maneira de tornar as terras vendáveis e, portanto, passíveis de serem espoliadas dos índios sem maiores dificuldades. O Ato no Tuca teve enorme repercussão e foi o golpe final para a derrota da proposta de emancipação.
plano geral (legislação e políticas públicas), seja em casos concretos (disputas judiciais e acompanhamento de processos de demarcação). A importância do tema é destacada por Dalmo de Abreu Dallari: “sem dúvida alguma a demarcação é fundamental, o que ainda é bem deficiente e está muito distante. Sem a demarcação, há sempre uma insegurança e há sempre um risco maior de invasões. Até o desenvolvimento de outros trabalhos necessários, como por exemplo a educação, saúde, isso tudo corre riscos quando não se tem a demarcação”.
Desde a sua fundação até os dias de hoje, a CPI-SP desenvolveu inúmeras campanhas em apoio à demarcação das terras indígenas. As campanhas envolvem a produção de subsídios para fundamentar as reivindicações, a divulgação dos pleitos indígenas junto à imprensa e opinião pública e ainda a pressão junto aos órgãos governamentais.
“A educação indígena vai junto com a conscientização dos direitos indígenas. Ao mesmo tempo, foi o desenvolvimento crítico e acadêmico de se pensar essa questão. E também havia todos esses voluntários que iam trabalhar nos diferentes grupos indígenas para, durante dias ou semanas, nesses encontros, dar aulas sobre como fazer cartilhas, ajudar eles mesmos a recuperar sua história, enfim, todo esse tipo de trabalho que depois foi se desenvolvendo em todo o país. Então esse trabalho sobre educação foi absolutamente fundamental” avalia Lux Vidal, uma das fundadoras da CPI-SP.
Por outro lado, se almejava rever a maneira como o índio era abordado nas escolas dos não-índios, compreender os mecanismos segundo os quais os preconceitos se desenvolvem para, então, desmontá-los e estabelecer novas linhas e parâmetros para a abordagem da questão indígena na sala de aula. Grandes desafios.
A Subcomissão de Educação Indígena da CPI-SP, sob a coordenação da antropóloga Aracy Lopes da Silva, começou então a atuar nessas frentes. Primeiro, com a organização de um encontro nacional para pôr em contato as diferentes pessoas e entidades que trabalhavam em iniciativas isoladas nas diferentes regiões do Brasil. Depois, a CPI-SP começou a trabalhar na produção de material de apoio a professores indígenas e na assessoria a eles. Investiu esforços também na formulação e na avaliação de políticas públicas e na participação em grupos de trabalho, mantendo um constante diálogo com a universidade e a reflexão crítica acadêmica.
1980
Não havia advogados de índios e, especialmente, nós não tínhamos ainda a Justiça Federal. Só havia a Justiça Estadual e, especialmente nos estados onde havia muitos índios, a Justiça sempre foi contra os índios. Nós fomos superando essa resistência ao advogado que realmente havia entre os antropólogos”.
O Departamento Jurídico foi criado em 1982 com a missão de aprofundar a relação Índios e Direito no Brasil, por meio da: promoção de discussão e divulgação do reconhecimento legal dos direitos indígenas; pesquisa da história da legislação e da doutrina indigenista no Brasil e em outros países; e assessoramento às comunidades indígenas nos processos judiciais.
Os resultados das pesquisas e debates promovidos pela CPI-SP foram sistematicamente divulgados no Boletim Jurídico, periódico publicado, pela primeira vez, em junho de 1983. Esses mesmos estudos subsidiaram os livros Os Direitos do Índio e Legislação Indigenista no Século XIX, de autoria de Manuela Carneiro da Cunha. Entre os eventos promovidos pelo Departamento Jurídico citamos: Ciclo de Conferências sobre Direito Indigenista na Faculdade de Direito da USP em 1983 e oCurso de Direito Indigenista em conjunto com a Faculdade de Direito da USP em novembro de 1988.
Ainda durante os anos 80, diversos povos indígenas tiveram o apoio e foram defendidos judicialmente pelos advogados do Departamento Jurídico da CPI-SP. A década de 80 marcou o início de uma nova fase no relacionamento entre as sociedades indígenas e o Estado brasileiro, na medida em que se começou a recorrer aos tribunais para cobrar a aplicação das leis e orespeito à Constituição. A CPI-SP teve presença marcante nesse movimento, defendendo judicialmente, entre outros, os Guarani das aldeias Krukutu, Boa Vista e Rio Silveira no Estado de São Paulo. Em 1982, os Guarani recorreram ao Poder Judiciário para garantir seus direitos à terra. Utilizando-se de serviços de advogados por eles mesmos constituídos, ingressaram com ações na Justiça e conseguiram várias vitórias. As decisões judiciais paulistas foram pioneiras e tiveram o mérito de elucidar questões anteriormente polêmicas, como, por exemplo, a capacidade processual das comunidades indígenas e seu direito de constituir seus próprios advogados.
“Penso que uma reunião do quilate apresentado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, assegurando o encontro dos maiores líderes existentes no País, das mais variadas tribos, jamais poderá ser efetuada nas mesmas proporções” depoimento de Marcos Terena (então presidente da União das Nações Indígenas), no livro Encontro Índios Direitos Históricos.
“Acho que essa reunião foi uma novidade total. (…) Foi a primeira reunião urbana em que os índios ocuparam todo o espaço”, Manuela Carneiro da Cunha.
O evento, promovido e organizado pela CPI-SP foi um marco na luta dos povos indígenas pela autodeterminação. O encontro aconteceu entre 26 e 30 de março de 1981, no Mosteiro dos Dominicanos, em São Paulo, e reuniu representantes de 32 povos indígenas vindos de 17 estados, além de 33 entidades de apoio à causa indígena. Pela primeira vez na história do Brasil, lideranças indígenas de todas as partes do País puderam expor seus problemas e reivindicações livremente.
“Para enviar a proposta do governo para a nova Constituição, em 1987, o governo nomeou uma Comissão de Notáveis, conhecida como Comissão Afonso Arinos. E esses notáveis se reuniram antes longamente e fizeram um texto inteiro. Esse texto no fim foi desconsiderado, evidentemente, foi largamente emendado, mas era uma base importante. A CPI-SP foi a única que fez lobby junto a essa comissão”, Manuela Carneiro da Cunha.
“A CPI-SP esteve sempre lá, na linha de frente. Quer dizer, acompanhando muito de perto e examinando cada palavra, cada proposta, fazendo propostas também. Eu acho que o trabalho dos indigenistas foi decisivo para que a Constituição tivesse um capítulo favorável aos índios”, Dalmo de Abreu Dallari.
Para subsidiar os debates, foi lançado ainda em abril de 1987 o livro Os Direitos do Índio, organizado por Manuela Carneiro da Cunha e realizado dentro da CPI-SP, com a colaboração de vários de seus membros. Essa publicação destacou-se como o principal instrumento de consulta, pelos constituintes, sobre os direitos dos povos indígenas no Brasil, legislação específica de outros países e os mecanismos internacionais de defesa dos direitos indígenas.
A CPI-SP integrou ainda a Coordenação Nacional – Povos Indígenas e a Constituinte que capitaneou os esforços para garantir que a nova Constituição consolidasse e avançasse no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. A Coordenação Nacional era constituída pela União das Nações Indígenas (UNI), Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP). Contava ainda com o apoio de 30 entidades.
Garantir os direitos indígenas no processo constituinte não foi tarefa fácil. Foi preciso enfrentar até mesmo campanhas de difamação às entidades de apoio aos índios em jornais de grande renome como o Estado de São Paulo. Houve um trabalho persistente de acompanhamento dos debates e das negociações em Brasília.
Delegações de índios vieram pressionar nas ocasiões de votação. E ao final conseguiu-se aprovar um capítulo bastante favorável aos índios.
No dia 5 de outubro de 1988 foi promulgada a Constituição brasileira. Pela primeira vez na história do Brasil, os índios passaram a ter um capítulo específico, onde seus direitos são amplamente reconhecidos. Para a CPI-SP, essa foi a culminação de uma fase, os seus primeiros dez anos. Abriam-se então novos caminhos para a luta pelos direitos dos povos indígenas. Manuela Carneiro da Cunha avalia: “nós temos hoje em dia uma legislação espetacular, só que agora evidentemente o problema é passar do papel para a realidade”
No final de 1988, o lançamento do livro As Hidroelétricas do Xingu e os Povos Indígenas colocou em novas bases o debate sobre a política energética do Brasil. O livro foi um instrumento fundamental na campanha que propunha a rediscussão dos projetos hidroelétricos da bacia do Xingu (no Pará) que ameaçavam inundar territórios dos povos indígenas Juruna, Arara, Kararaô, Xikrin do Bacajá, Asuriní, Araweté e Parakanã.
A campanha inovava por se propor a agir antes da construção das hidroelétricas. Até aquele momento, ações dos indigenistas vinham remediar depois que a decisão de construir já tinha sido tomada ou mesmo a construção iniciada.
Por meio da campanha buscou-se questionar a necessidade de implantação do empreendimento hidroelétrico do ponto de vista da política energética mais ampla e não apenas porque era prejudicial aos índios. E, assim, a campanha articulou também especialistas de diversas áreas (energética, ambiental, social) e demais setores atingidos pelas barragens.
Outro desafio foi o de traduzir as informações técnicas para uma linguagem acessível à opinião pública e aos beneficiários da CPI-SP. Essas informações eram divulgadas na forma de cartilhas e mapas.
Com o apoio da CPI-SP, foi criada em 1989 a Comissão Regional de Atingidos por Barragens do Complexo Hidroelétrico do Xingu (CRACOHX) que coordenou, nos anos 1990, a luta dos movimentos populares da região contra a construção desse projeto.
Com o apoio da CPI-SP, os quilombolas venceram a primeira parte da luta, impedindo que os vários projetos hidroelétricos fossem concretizados nos anos 1990.
1990
A experiência acumulada pela CPI-SP na campanha As Hidroelétricas do Xingu e os Povos Indígenas acabou suscitando demandas para assessoria a outros setores da sociedade, o que significou uma abertura considerável no seu leque de beneficiários. Foi um período em que se trabalhou muito próximo das comissões de atingidos por barragens, sindicatos de trabalhadores rurais, colônias de pescadores, Comissão Pastoral da Terra, Central Única dos Trabalhadores, CONTAG, pastorais e comunidades quilombolas. Conheça algumas das ações da CPI-SP na luta contra as barragens:
Formação – A CPI-SP desenvolveu diversas iniciativas para melhor instrumentalizar os atingidos (índios e não-índios) para o entendimento da política energética e maior compreensão sobre as possíveis alternativas aos grandes empreendimentos hidrelétricos, tais como:
Curso sobre Política Energética (1ª etapa) – promovido em parceria com a Coordenação dos Atingidos por Barragens da Amazônia (CABA) e com o apoio do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo e da Prelazia do Xingu, em dezembro de 1992, em Altamira, Pará. Entre os 50 participantes estavam representados comissões de atingidos por barragens da Amazônia, organizações indígenas, comunidades quilombolas, sindicatos de trabalhadores rurais, colônias de pescadores e agentes de pastorais.
Curso sobre Alternativas Energéticas para Lideranças Indígenas de Roraima – realizado em parceria com o Conselho Indígena de Roraima e com o apoio do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, da Diocese de Roraima e da CABA, em agosto de 1993, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no Estado de Roraima. O curso contou com a participação de 50 lideranças indígenas de Roraima.
Curso sobre Política Energética (2ª etapa) – promovido em parceria com a Coordenação dos Atingidos por Barragens da Amazônia (CABA) e com o apoio do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo e da Prelazia do Xingu, em setembro de 1993, em Altamira, Pará. Entre os 60 participantes estavam representados comissões de atingidos por barragens da Amazônia, organizações indígenas, comunidades quilombolas, sindicatos de trabalhadores rurais, colônias de pescadores e agentes de pastorais.
Campanhas – A CPI-SP promoveu e apoiou várias campanhas contras barragens nos Estados do Pará, Roraima e São Paulo (Vale do Ribeira). Uma delas campanha foi aquela promovida em parceria com o Conselho Indígena de Roraima entre 1992 a 1995, que visou impedir a construção da Hidroelétrica de Cotingo na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Tratava-se de um projeto do governo do Estado de Roraima destinado a abastecer a cidade de Boa Vista.
Assessoria – A CPI-SP apoiou o processo de criação de várias comissões de atingidos por barragens, como a Coordenação de Atingidos por Barragens da Amazônia, o Movimento Nacional de Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Ameaçados pelas Barragens do Vale do Ribeira (MOAB). Posteriormente, a CPI-SP assessorou essas organizações divulgando informações e subsídios, participando de reuniões de planejamento, prestando consultoria em encontros e assembleias, promovendo cursos de formação, apoiando campanhas de divulgação e propiciando o contato com parlamentares, imprensa, ONGs internacionais, agências de cooperação e órgãos do Poder Público.
Estudos e Publicações – Diversos estudos de viabilidade e relatórios de impacto ambiental de hidrelétricas, entre outros documentos do Setor Elétrico, foram analisados pela CPI-SP. Entre 1992 e 1994, a CPI-SP, em parceria com o Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo, empenhou-se em pesquisar alternativas para o atendimento de energia elétrica para a região Oeste do Pará e para o Estado de Roraima. Entre as publicações produzidas pela CPI-SP na década de 90, temos as cartilhas “Energia na Amazônia: Conceitos e Alternativas” e “Roraima: Energia e Alternativas para o Futuro”.
O papel da CPI-SP foi o de apoiar o relacionamento dos índios com o Ministério Público Federal e o Poder Judiciário: auxiliando nos contatos, elaborando documentos, acompanhando os processos judiciais e divulgando sua luta à opinião pública. Graças a essa atuação, diversas decisões desfavoráveis aos direitos indígenas, concedidas em juízos de primeira instância, foram revertidas.
Nos anos 90, a CPI-SP deu continuidade aos seus esforços para que a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, da Organização Internacional do Trabalho fosse adotada pelo Brasil. Para garantir a ratificação, a CPI-SP produziu subsídios para auxiliar no voto dos relatores e acompanhou o processo de análise e votação da
Convenção 169, procurando demonstrar aos parlamentares a importância da aprovação da matéria. Em novembro de 1993, atendendo à solicitação da OIT, o Departamento Jurídico da CPI-SP produziu o estudo “Direitos Indígenas no Brasil e a Aplicação da Convenção 169” que analisa o processo de ratificação e indica os obstáculos e interesses contrários.
O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) n.º 34/93, que sanciona o texto da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), somente veio a ser aprovado pelo Congresso Nacional em junho de 2002, após 11 anos de pressões.
No dia 20 de novembro de 1995, foi conferido o primeiro título de terra de quilombo no Brasil à comunidade Boa Vista, em Oriximiná. A titulação de Boa Vista criou um precedente histórico que contribuiu para que muitas outras comunidades conseguissem a regularização de suas terras. Isso foi fruto de um trabalho iniciado em 1989 que teve à frente a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO) com o apoio da CPI-SP e da Paróquia de Oriximiná.
Saiba mais sobre os quilombolas de Oriximiná.
2000 a 2009
Esse trabalho foi realizado em parceria com diversas organizações não-governamentais, entre as quais se destacam o Fórum de Entidades Negras do Estado de São Paulo, o Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura nos Estados do Pará e Amapá e a Comissão Pastoral da Terra-Pará.
Como resultado, foi construído um arcabouço legal muito significativo nos estados do Pará e de São Paulo. Esses dois estados são os que registraram maiores avanços em termos de legislação estadual sobre quilombos. Os dois estados disciplinaram em leis e decretos os procedimentos para a titulação das terras de quilombo e têm significativa atuação na garantia dos direitos territoriais dessas comunidades.