POVO INDÍGENA HIXKARIYANA

Os Hixkaryana são um povo de língua caribe, cuja população é de aproximadamente 1300 pessoas. Habitam atualmente as margens dos rios Nhamundá e Jatapú, respectivamente afluentes do Amazonas e do Uatumã. O rio Nhamundá corre através da divisa das Terras Indígenas Nhamundá-Mapuera e Katxuyana-Tunayana.

A maioria das 11 aldeias Hixkaryana se encontra dentro da TI Nhamundá-Mapuera e as demais na TI Katxuyana-Tunayana no médio e baixo rio Nhamundá, ainda não demarcada. Alguns Hixkaryana vivem juntos aos Waiwai em aldeias no Jatapu, na TI Trombetas-Mapuera.

HISTÓRIA

Entre os séculos XVI e XVIII são poucas as informações sobre os índios na região do rio Nhamundá. Além disso, as referências existentes contemplam apenas o curso baixo do rio, sua parte navegável, em contraposição à parte alta, repleta de cachoeiras. Falam sobre a região mais próxima à sua foz, no encontro com o Amazonas. A praticamente ausência de informações permanece no século XIX. Justamente pela falta de relatos que se supõe que toda a extensão do rio Nhamundá era repleta de povos indígenas antes da chegada dos brancos.

É da década de 1920 uma primeira referência sobre a dispersão dos indígenas da região em pequenas aldeias no interflúvio Nhamundá-Jatapu. Teria ocorrido em razão de epidemias e guerras ocorridas também com brancos, gerando a subida pelo rio e o encontro com outros povos da cabeceira do Nhamundá.

Na década de 1950, alguns Hixkaryana já haviam sido atraídos pelos Waiwai para a missão evangélica de Kanashen, na Guiana Inglesa, promovida por missionários da Unevangelised Fields Mission (UFM) – ou, em sua versão atual, Missão Evangélica da Amazônia (MEVA).

Esse primeiro contato com o proselitismo religioso foi importante para favorecer a chegada de missionários do Summer Institute of Linguistics (SIL) em 1958. Esses atuaram, sobretudo, nas aldeias do rio Nhamundá, realizando contatos esporádicos no Jatapu. Permaneceram na região por duas décadas. A partir dos anos 1980, a presença missionária entre os Hixkaryana passa a ser promovida pela Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB).

KASSAWÁ

Os missionários do SIL obtiveram sucesso em atrair as diferentes famílias de Hixkaryana do Nhamundá para a aldeia Kassawá. Esta é a aldeia mais a montante do rio Nhamundá, e até poucos anos, concentrava toda a população hixkaryana.

Os missionários se estabeleceram em Kassawá, aberta pelos Hixkaryana anos antes. Os agentes do SIL pretendiam se instalar no rio Jatapu, de acesso mais fácil para Manaus. Contudo, os Hixkaryana foram contrários à ideia, pois essa região era conhecida por eles como um lugar perigoso.

DESCENDO O NHAMUNDÁ: DISPERSÃO RECENTE

Há alguns anos, os Hixkaryana vêm empreendendo movimentos de dispersão à jusante no rio Nhamundá. Não é possível eleger uma causa única para esses movimentos. A abertura de cada uma das novas aldeias envolve diferentes fatores que contribuem para a dispersão em relação à aldeia Kassawá: mortes, proximidade das cidades, convivência pacífica entre os índios, facilidade de navegação, intrusão dos brancos, apoio da Funai, dentre outros.

Mas apesar dessa onda de dispersão é importante ressaltar que Kassawá segue sendo uma aldeia grande para os moldes da região (cerca de 500 pessoas). Por esse e outros motivos, estabelece um modo diferente de socialização entre as famílias.

Observa-se nesses movimentos – e no contraste entre Kassawá e as outras aldeias pequenas – manutenções e transformações inerentes aos modos de vida dos Hixkaryana, revelados pela dinâmica histórica de concentração e dispersão.

A dispersão de Kassawá também tem duas outras implicações históricas importantes. Primeiro, articula-se com a crescente ida dos Hixkaryana para as cidades da região, como Nhamundá, Urucará, Parintins e Manaus. Esse movimento é feito, sobretudo, por rapazes que, dentre outras razões, mudam-se para as cidades para dar continuidade aos seus estudos na licenciatura intercultural da Universidade Estadual do Amazonas (UEA). Segundo, a dispersão se relaciona com o processo de regularização da TI Katxuyana-Tunayana. Já existem aldeias hixkaryana abertas no baixo Nhamundá, para além dos limites da TI Nhamundá-Mapuera e, portanto, dentro dos limites da TI Katxuyana-Tunayana.

COMO VIVEM

Os Hixkaryana vivem ainda hoje da agricultura, da caça e da coleta. Mesmo com a entrada de alimentos vindos da cidade (como macarrão, arroz, feijão, açúcar, café, leite em pó), a base da alimentação permanece sendo a mandioca, da qual se produz farinha, e diversos tipos de beiju e bebidas de goma.

Antigamente as diferentes famílias de uma aldeia habitavam uma única e grande casa, nàmno. Eram construções circulares com altos telhados de ubim. Hoje, as famílias se distribuem em casas diferentes de acordo com as unidades familiares.

A grande maioria das casas é feita de madeiras em forma de tábuas, serradas na mata com motosserras. Estas casas quase sempre circundam um pátio comum, no qual se encontra a maya, grande casa utilizada para festas, reuniões, e outras ocasiões. A maya juntamente com as cozinhas e casas de farinha são os locais de convivência das diferentes famílias.

Os Hixkaryana mantêm aspectos importantes do modo de organização aldeão, como antigas regras de co-residência, o número de moradores, a distância entre as aldeias, e o maya enquanto transformação da antiga nàmno, como espaço comunal por excelência.

É preciso ressaltar, novamente, algumas peculiaridades da aldeia Kassawá. Mesmo com o movimento recente de dispersão, a população de Kassawá ainda é maior que a de todas as demais aldeias do Nhamundá somadas. Isso gera um efeito no modo de interação entre as famílias que – somado aos diferentes tipos de relações com não-indígenas residentes em Kassawá (missionários, enfermeiros, funcionários da FUNAI e das unidades da Secretaria de Estado e da Educação) – faz com que as pessoas se reúnam apenas esporadicamente, em cultos, conferências cristãs, festas e trabalhos coletivos. Diferentemente das aldeias menores que, mesmo mais perto das cidades, mantem relações menos intensas com não indígenas.

Quase todas as aldeias têm sua igreja, escola e assistência à saúde. Recebem apoio da Secretaria de Educação para o desenvolvimento de educação diferenciada prevista por lei, mas que similar a outras tantas regiões do país, funciona de maneira precária. Por sua vez, a Secretaria Estadual de Saúde Indígena (SESAI) e a Casa de Saúde Indígena (CASAI) disponibilizam enfermeiros e técnicos de enfermagem para atuação nas aldeias, além de vários Hixkaryana atuarem como Agentes de Saúde Indígena (AIS) trabalhando para o Distrito Sanitário.

POLÍTICA DOS TUXAUAS E ROTINA CRISTÃ

O cotidiano hixkaryana é marcado pela presença do cristianismo. Há regularidade nos cultos as quartas e sextas-feiras e aos domingos. As pessoas se engajam nas atividades da igreja, almejam um lugar nos cultos (como o de cantores/as) e nos cargos institucionais propriamente ditos (diáconos e pastores).

Há uma estreita relação entre o poder político e o poder religioso na figura dos tuxauas, chefes que quase sempre acumulam a posição de pastores. Entretanto, esse tipo de convergência não é de toda estranha, pelo contrário. Nota-se que antes da chegada dos brancos a distinção entre o político e o religioso era menos clara, e que normalmente o tuxaua, chefe de maloca, figura de liderança, era ao mesmo tempo o xamã.

Essa convergência aponta também para uma característica fundamental na chefia ameríndia: a autoridade não vem da ocupação de um cargo, mas sim da conquista dele por meio da capacidade de reunir pessoas, ouvi-las e fazê-las conversar.

FESTAS: A IMPORTÂNCIA DAS RELAÇÕES COM OS RAWANA

A relação de décadas com não-indígenas trouxe mudanças na alimentação, o convívio intenso com as missões cristãs, e o acesso a assistência e políticas do Estado (educação, saúde, Bolsa Família, aposentadorias, etc.). No entanto, pode-se notar que os Hixkaryana mantêm relações fundamentais para o desenvolvimento de seu modo de ser. Tomamos então mais um exemplo de como isso acontece: as festas.

Diferentes de muitos outros povos ameríndios, cujos momentos específicos para a realização de festas estão ligados fundamentalmente ao nascimento ou a morte (incluindo guerras), os Hixkaryana fazem festa para realizar trocas comerciais e também de pessoas, isto é, arranjar e promover casamentos.

As festas são o lugar por excelência para se aproximar dos distantes, visitantes ilustres: os rawana. A noção de rawana (e seus cognatos) abarca desde um parceiro formal de troca até o modo de designar o caráter estrangeiro do visitante. Receber um rawana em uma festa é, então, receber um estrangeiro.

Antigamente, as festas não tinham uma época pré-definida. Hoje, os Hixkaryana praticamente só recebem seus rawana nas datas cristãs (páscoa e natal) e nas conferências cristãs que reúnem pastores e líderes evangélicos indígenas de todo o país. Nem por isso a importância de receber os rawana se subsome por completo ao conteúdo cristão reproduzido nessas datas específicas. Nem mesmo, ao fato de estrangeiros conviverem anos com eles: os missionários que moram há década com os Hixkaryana são tratados também como rawana.

Os visitantes são indispensáveis nas festas, e o modo específico de sociabilização de Kassawá é também relevante para esse argumento. O fato de estarem todos os Hixkaryana concentrados em uma mesma aldeia impossibilitava que um visitante viesse de fora. Nas festas a posição de rawana passou a ser representada por pessoas de dentro: na prévia da festa elas saíam para a mata, e logo em seguida voltavam fazendo a vez de rawana, ou seja, comportando-se como estrangeiros. Com a dispersão recente das aldeias, a possibilidade de receber um estrangeiro foi retomada.
Portanto, as festas são um lugar privilegiado para a observação das importantes dinâmicas de diferenciação inerentes aos povos dessa região.

BIBLIOGRAFIA

HOWARD, Catherine
_1993. “Pawana; a farsa dos visitantes entre os Waiwai da Amazônia”. In: Viveiros de Castro, Eduardo & Carneiro da Cunha, Manuela, Amazônia: Etnologia e História Indígenas. São Paulo: Núcleo de História Indígena e do Indigenismo, USP/FAPESP, 229-264.

LUCAS, Maria Luisa de Souza
_2014. “Antes a gente tinha vindo do jabuti”: notas etnográficas sobre algumas transformações entre os Hixkaryana no rio Nhamundá/AM. Dissertação de Mestrado. Museu Nacional/UFRJ.
__2015. “A ‘volta’ do rawana: notas sobre as festas regionais entre os Hixkaryana”. In: Entre águas bravas e mansas. Índios & Quilombolas de Oriximiná. Comissão Pró-Índio de São Paulo & Instituto de Formação e Pesquisa Indígena, 298-215.