Leia entrevista inédita com Luiz Jardim Wanderley, pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense, sobre as contradições da transição energética
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A transição energética vem sendo colocada como inevitável e urgente pelos atores que mais produzem danos climáticos, segundo Luiz Jardim Wanderley, pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense. A Comissão Pró-Índio de São Paulo entrevistou o pesquisador para entender melhor as implicações do modelo de transição energética que está sendo implementado, com debates e tomadas de decisões muitas vezes restritas aos atores do Norte Global.
Leia a entrevista a seguir.
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Comissão Pró-Índio de São Paulo – Você pode começar explicando as contradições da transição energética da forma como está posta hoje em dia?
Luiz Jardim Wanderley – Eu acho que tem um ponto de entrada no debate da transição energética que é importante: “quem realmente precisa fazer a transição energética urgentemente?”
É sempre bom enfatizar que existe uma desigualdade. Grupos que consomem mais matéria-prima, mais produtos industrializados e que, portanto, produzem mais emissões de gases de efeito estufa é que devem ser responsabilizados.
Essa crise climática – apesar de ser global porque produz efeitos em todo o globo, inclusive afetando as populações mais pobres e periféricas de maneira mais substancial – não é um produto que todos são igualmente responsáveis.
E a transição energética vem sendo colocada como inevitável e urgente pelos atores que mais produzem danos climáticos, pelos países que mais vem produzindo a crise, pelas empresas que mais produzem danos climáticos.
E nesse contexto eles vêm considerando que os danos socioambientais provenientes da transição energética fazem parte do processo, fazem parte dessa nova economia da transição, algo que é secundário frente a necessidade de produzir uma redução dos impactos climáticos. Então, eu colocaria que a gente não vem de forma alguma discutindo – tanto do ponto de vista nacional, quanto do ponto de vista global – esses impactos provenientes de uma nova economia da transição.
Outro ponto importante também para a gente discutir é o modelo de produção e consumo. E isso também está vinculado com essa ideia de transição energética, não é só trocar o seu carro a gasolina por um carro elétrico…
Esse seria o ponto central do debate da transição, mas eu não vejo que ele está sendo desenvolvido de fato pelos agentes hegemônicos, pelos agentes que são tomadores de decisão e que são detentores de poder.
O que a gente está vendo é a construção de uma economia verde ou de uma economia da transição, e não está se debatendo transformação no modelo de consumo que temos, pelo contrário. Antigas empresas que foram muito importantes no período fordista, por exemplo, as automobilísticas, estão com a perspectiva de mudar toda uma frota de carros. Eu acho que esse é o grande desejo dessas empresas que estavam em crise nos últimos vinte, trinta anos. E agora tem pela frente a possibilidade de transformar toda essa frota hoje disponível sem qualquer tipo de estratégia de adaptação desses carros que temos hoje, por exemplo. Até mesmo uma política mais ampla, do ponto de vista dos governos, para uma universalização do transporte coletivo.
Nada disso está em debate hoje enquanto centralidade de uma transição energética. Os governos e outros tomadores de decisão não vêm colocando a redução do consumo, a redução do modelo de desenvolvimento (do que considera ser desenvolvimento) como elemento central do debate para solucionar ou mitigar e compensar os danos das mudanças climáticas.
A gente está longe do debate em torno de uma revisão do modelo de consumo de massa, de consumo excessivo, sobretudo dos grupos mais abastados da sociedade, mais rico da sociedade, esses sim consomem muito mais do que o restante da sociedade. Isso não está sendo colocado com a centralidade que deveria ser dentro da transição energética.
E também uma outra questão que também é invisibilizada no debate é que em algumas partes do país as pessoas ainda não têm acesso a eletricidade. Você acha que esse modelo de transição vai incluir essas pessoas?
A gente está no modelo que é um modelo de culpabilização coletiva dos danos ambientais. Já tivemos isso no contexto da água, por exemplo. Quando veio o debate sobre gestão da água todos eram culpados pelo tempo no banho ou todos são culpados pela energia que consomem. Isso dentro de uma matriz ideológica da educação ambiental que culpabiliza os sujeitos e busca soluções nos consumidores, mas soluções individuais não mudam o modelo de desenvolvimento, não mudam o modelo de consumo.
Boa parte das comunidades isoladas da Amazônia vivem com períodos sem luz e períodos com seus motores a diesel e são consumidores de motores a diesel – que é um dos grandes problemas da transição, os combustíveis fósseis. Esses sujeitos vão ser capazes de se adaptar com painéis solares? A médio, longo prazo o diesel vai encarecer, vai se tornar cada vez mais inviável para esses sujeitos consumirem o diesel. Esses grupos sociais vão conseguir se adaptar, caso a gente não tenha uma política pública de distribuição de painéis solares para essa transição de microescalas de localidade comunidades específicas afastadas das redes de energia.
Então, não necessariamente esses grupos vão ser incluídos e muito possivelmente caso eles não sejam incluídos via política pública, eles sofrerão fortemente os efeitos econômicos da transição.
O governo está discutindo o plano nacional de transição energética. Mas por outro lado tem destinado um valor de quase 400 bilhões para projetos de petróleo e gás dentro do PAC. Você acha que isso já sinaliza um pouco os caminhos que o governo quer tomar dentro dessa temática?
Me parece que o governo vai atuar em duas frentes ao mesmo tempo. Uma frente que vai para o lado de fazer políticas que atendem o debate das mudanças climáticas. Uma política que já vem sendo feita de diminuição do desmatamento e de incentivo a energias ditas como renováveis. Então, por um lado, o governo vai fazer uma política pró-economia verde de transição, estimulando, por exemplo, o mercado de carbono. E por outro, ele não vai abandonar algo que é a política de petróleo e gás, inclusive, vista como uma possibilidade de aumento da arrecadação, de aumento das exportações porque grande parte desse petróleo e gás serão exportados.
A transição energética da forma como ela está posta aumenta a demanda por minério. Quanto esse aumento de demanda por minério vai pressionar mais a Amazônia?
A economia da transição energética, eu gosto de dizer assim porque na verdade é uma nova economia, vem com um crescimento da demanda de minerais tidos como fundamentais para a transição energética em diferentes partes do mundo, mas sobretudo na periferia global, onde esses minérios estão mais abundantes.
A tendência é que aumente o volume de produção dos minérios e, com isso, aumente a demanda por novas áreas na Amazônia, que já tem a extração de alguns desses minérios. Por exemplo, a bauxita, que é extraída em Oriximiná, Juruti e Paragominas, no Pará, e é transformada em Barcarena, também no Pará, em alumínio.
E o alumínio é muito consumido justamente para garantir vários itens da transição energética assim como o cobre, que é um dos condutores de energia mais usados no contexto atual e fundamental também para a transição energética. O níquel vem sendo explorado também na região do Pará. E o manganês vem sendo produzido tanto em Rondônia quanto no Amazonas.
Além disso, a gente tem uma área de pouco conhecimento geológico. Ainda é um potencial de se descobrir novos minérios na Amazônia.
A Amazônia é fundamental para o equilíbrio climático global, ela é uma floresta fundamental para dinâmica ecológica e climática do mundo, e ela se torna ameaçada justamente pela expansão de grandes projetos minerais.
E falando justamente nesses impactos, eu queria trazer o exemplo aqui da mineração em Oriximiná. Esse aumento de demanda por alumínio pode piorar a situação das comunidades locais?
Ao que tudo indica, a Mineração do Rio do Norte já está se preparando para um eventual crescimento de demanda da bauxita. Ela tem tentado avançar com o projeto Novas Minas, licenciando mais cinco minas.
Então está se licenciando algo de grande porte.É uma empresa que está se preparando seja para manutenção dessa demanda que ela tem ou para acelerar essa produção caso a demanda por minério seja mais elevada nos próximos dez anos, por exemplo.
Isso sem dúvida nenhuma vai produzir e já vem produzindo tensões com as comunidades quilombolas e também com as comunidades ribeirinhas
Que fatores devem ser garantidos nessa no que seria essa transição justa de fato?
Eu acho complexo alguém definir o que é uma transição justa de uma maneira individual. O debate da transição é muito novo. Existem vários movimentos sociais, povos e comunidades tradicionais no Brasil que estão pensando uma transição popular, justa e democrática. E isso ainda é um conjunto de percepções em construção que precisam vir a partir das comunidades e não de pesquisadores ou de organizações não governamentais ou mesmo do Estado.
A gente está ainda no contexto muito incipiente desse projeto coletivo para uma transição energética, mas acho que já temos um avanço do que não queremos em uma transição. Não queremos uma transição que produza efeitos danosos sobre grupos vulneráveis, a gente não quer uma transição que vai produzir danos no Sul Global para atender a demanda de uma economia de transição do Norte Global.
A gente não quer uma transição que seja feita a partir de um mercado financeiro de carbono, que seja altamente especulativo e que mercantilize os territórios das comunidades tradicionais.
Eu acho que alguns desses aspectos já mostram como será o modelo de transição popular, democrático e justo. Mas isso ainda está sendo construído por diferentes organizações e movimentos sociais.
E o debate tem que ser público e coletivo para que a gente avance numa perspectiva de transição energética e de transformação do modelo de desenvolvimento. Eu acho que esses grupos vêm colocando no cerne no debate a questão do consumo, desse modelo desenfreado de desenvolvimento onde o crescimento é a palavra-chave para se medir o desenvolvimento.