Fonte: Globo

Preservar o meio ambiente e a nossa história é interesse de todos

Ser quilombola é uma missão: nos dedicamos a manter vivas tradições históricas e culturais, e a preservar nossas terras ancestrais. Num país sem memória e onde o meio ambiente é tratado com descaso, nossa luta vai muito além de mera disputa territorial. Na verdade, é muito mais simples conseguir título de terra como pequeno produtor rural — usando leis como a de usucapião — do que se declarando quilombola. O processo de reconhecimento e concessão, neste caso, é bem mais longo e minucioso.

Zumbi também era conhecido como “homem invisível” (em kikongo, sweka), pois se mantinha fora do alcance dos olhos do inimigo. Herdamos essa invisibilidade, mas como revés: hoje, a causa quilombola é tema de telenovela (“O outro lado do paraíso”, da TV Globo) e a região da Serra da Barriga (AL), onde ficava Palmares, recebeu, no fim de 2017, o título de Patrimônio Cultural do Mercosul; mas, por anos, nossa luta se manteve à margem da sociedade.

Segundo um levantamento da ONG Justiça Global, só 4% dos mais de 1.600 processos de titulação de terras quilombolas em andamento no Incra foram concluídos. E o horizonte não é nada animador: em sete anos, o orçamento do órgão para o setor teve uma queda de 94%. Em 2017, o Incra dispôs de apenas R$ 4 milhões; em 2010, eram R$ 64 milhões.

Há comunidades que datam do século XVI, mas só a partir da promulgação da Constituição de 1988 puderam requerer legalmente sua posse. Esse direito foi regulamentado pelo Decreto 4887/2003, que, seguindo o que dita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, estabelece a autoatribuição como único critério para identificação das comunidades quilombolas. Este decreto vem sendo questionado por um único partido, o DEM, por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, desde 2004.

A próxima sessão do julgamento está marcada para quinta-feira, no STF. Na última, em novembro passado, o ministro Dias Toffoli nos deu ganho de causa, mas deixou pairando no ar uma ameaça que há anos aflige nossos irmãos indígenas: o “marco temporal”. Segundo esta tese, só teria direito à terra quem a estivesse ocupando quando da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. O dispositivo releva casos de expulsões violentas. Nossas terras são cobiçadas, e a violência contra nós tem crescido: em 2017 foram 14 assassinatos, contra oito em 2016 e dois entre 2011 e 2015.

É importante frisar: a luta não é só nossa. Preservar o meio ambiente e a nossa história é interesse de todos. O Vale do Ribeira é o último remanescente de área contínua de Mata Atlântica no Brasil. Não por acaso, há cerca de 50 comunidades quilombolas na região. Entre elas, o Quilombo Ivaporunduva, que resiste desde 1630. Um estudo da Comissão Pró-Índio de São Paulo, feito em 35 quilombos no Norte do Pará, apontou que a presença deles tem sido fundamental para a preservação da floresta. Por isso, grite conosco: quilombo preserva, preserva quilombo!

Sandra Maria Andrade é titular da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas