Fonte: PARI-C

Nesta nota de pesquisa, relativa ao estudo de caso sobre partos na pandemia – o qual vem sendo desenvolvido pela rede de pesquisadores indígenas e não indígenas do módulo Brasil Meridional da PARI-c –, reunimos dois depoimentos de mulheres do povo Guarani Mbya que viveram a experiência da chegada de uma criança no atual contexto em diferentes comunidades e perspectivas. O primeiro é o de uma jovem mãe, Ywa Mirim (Suzana Macena), que pretendia parir seu segundo filho na Terra Indígena (TI) Ribeirão Silveira (no litoral de São Paulo) tendo sua mãe como parteira, mas precisou recorrer ao hospital, onde foi informada da chegada da COVID-19 ao Brasil e da presença de uma pessoa contaminada. O segundo é o de uma senhora parteira, Kerexu Poty (Paula da Silva), que trouxe ao mundo sua neta na TI Takuari (na região paulista do Vale do Ribeira), pois a filha preferiu fazer o parto na aldeia.

Parte do depoimento dessa jovem mãe à Valéria Macedo foi feito em mensagem de áudio em guarani, e outra parte, em português, em conversa posterior pelo dispositivo audiovisual do celular. Vherá Mirim Ataíde Vilharve fez a transcrição e tradução do depoimento em guarani e Camila Padilha transcreveu a conversa em português. Já o depoimento da parteira Kerexu Poty foi registrado em conversa presencial com Ataíde na TI Takuari. Kerexu Poty é irmã do cacique dessa comunidade, Timoteo Vera Popygua, o qual é também o sogro de Ataíde. Ela e sua filha viviam em uma comunidade no Rio Grande do Sul e se mudaram para a Takuari no período inicial da pandemia. A edição do material na forma de dois depoimentos escritos foi feita por Valéria. Ao final dos textos em português, anexamos as transcrições das partes faladas em guarani, feitas por Ataíde.

Cuidados e palavras de Suzana Macena Ywa Mirim

Eu tive minha primeira filha quando era bem nova, chegando aos 16 anos, por isso tinha medo. Vinha sempre na minha cabeça: “como eu poderia criar essa criança?”. Minha mãe, sempre firme, me falava como fazer. O primeiro filhinho da minha irmã foi aos 12 anos e minha mãe ensinava a ela também. Meu pai também sempre estava com a gente, orientando na opy. No meu segundo filho, eu já tinha experiência, mas algumas vezes também chegavam aqueles medos que a gente tem quando está grávida.

As mulheres sabem que vão engravidar por uma conexão espiritual. Não só pela lua que sabemos, mas também pelos sonhos, se pegamos filhote de animais ou de pássaros. As mais velhas, nossas mães e avós, falam que se tiver sonhos assim é porque um ser vai estar a caminho para trazer alegria para a família. Eu sonhei que peguei filhote de cutia fêmea e engravidei de uma menina. Quando estava para engravidar do meu menino, sonhei que peguei um filhote macho de cutia.

Eu planejava ter meu segundo filho em casa. Minha mãe ia fazer o parto. Ela fez o parto dos filhos do meu irmão e disse que isso foi muito importante para ela se fortalecer. Ela estava me acompanhando na gestação, mas quando chegou no final, tive uma complicação, porque o neném não queria descer. Estava demorando muito, então ela ficou preocupada e decidiu que eu fosse ao hospital.

Nossa comunidade fica perto das cidades de Bertioga e de São Sebastião. Fui ao hospital de São Sebastião, que é mais perto da gente e a ambulância chega rápido. O hospital de Bertioga é um pouco complicado porque alguns médicos não aceitam muito bem os indígenas. Por isso, a maioria vai para o de São Sebastião ou de Boiçucanga [bairro do município de São Sebastião].

Quando eu ganhei meu filho no hospital, passou um dia e a enfermeira entrou falando que tinha chegado uma doença que era contagiosa, que era para a gente se prevenir. Por conta disso ela proibia visita, tanto é que meu marido foi ao hospital, mas as enfermeiras não deixaram que ele entrasse. Mas eu não fiquei sozinha porque outra moça da aldeia ganhou quase junto comigo, um dia depois de mim. Eu tive no dia 17 de março e ela no dia 18. Então a gente ficou junta lá uns três dias, no mesmo quarto. Ela me disse que tinha um pouquinho de medo de ter neném na aldeia, então quando ela sentiu a contração decidiu ir para o hospital. Ela já perdeu um bebezinho antes, mas foi mesmo no hospital.

A gente já escutava dessa doença que estava se espalhando na China, mas nós nem estávamos nos preocupando, porque a gente nem imaginava que ia chegar aqui. Mas quando passou um dia, acho que era umas 11 horas da manhã, a enfermeira chegou falando que tinha uma mulher contaminada no hospital, então eu fiquei com medo. Mas me liberaram rápido para vir para a aldeia, então esse medo diminuiu. Aqui [na aldeia] é mais tranquilo, a gente não sai muito. Eu não sei sobre outras pessoas, mas eu não saio muito. Só teve um caso aqui de contaminação, de um rapaz que sempre vai fazer hemodiálise em São Paulo. Aí ele pegou e tiveram que colocar ele fechado na escola. Ele ficou uns quinze dias lá junto com a esposa, que também pegou.

Agora os mais velhos estão falando mais sobre essa doença porque ela está se espalhando mais. Eles sempre aconselham os jovens a se cuidarem, a não saírem muito para a cidade. Mas a maioria dos adolescentes não escuta, eles ficam mais no celular mesmo, no jogo. Mas os mais velhos continuam na Casa de Reza (opy) porque eles acreditam muito em Nhanderu [divindade]. Eu acho que a tecnologia está afastando cada vez mais os jovens da opy, isso é preocupante. Se a pessoa só focar na tecnologia, vai se perder no caminho, como a gente fala na opy. Não é só a tecnologia que importa, tem a vida espiritual também. Mesmo não entrando todo dia, tem que entrar na opy para se comunicar com Nhanderu. Mas o lado bom é que, se a gente souber usar, celular também é coisa boa… Os xeramõi [os mais velhos] não proíbem nada, só querem que faça o equilíbrio. Mas os mais novos não entendem isso.

Eu fiz o pré-natal na aldeia, como todas as mulheres fazem desde que contrataram um médico no posto de saúde [Polo-Base da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), localizado na TI Ribeirão Silveira]. Mas algumas vezes a pessoa sofre de alguma coisa e não pode ir ao posto. Minha irmã está grávida e sofre de varizes, então a perna dela fica dolorida, não pode andar. Então não custava nada pegar os materiais e examinar as grávidas na casa delas. A gente não gosta de ir ao posto.

A gente também não gosta de ir ao hospital, mas o de São Sebastião é mais legal. Eu tive minha primeira filha lá em Angra [Angra dos Reis, município do Rio de Janeiro] e o hospital de lá é bem diferente, bem pior. Em São Sebastião eles já sabem o costume dos indígenas porque o cacique vai e fala para os enfermeiros que nosso costume é aquilo, que a gente não pode comer aquilo… Então é satisfatório para a gente. Mas algumas vezes enfermeiras “chatas”, como a gente diz, incentivam a comer aquilo que a gente não pode.

A gente sempre enterra a placenta, não pode deixar lá no hospital. No meu caso eles foram educados, perguntaram se eu queria levar, eu disse que sim e eles disseram que iam colocar dentro de um freezer e quando dessem alta iriam me dar.

Depois de ganhar criança, já na aldeia, em casa, enterramos a placenta e eu tive que seguir orientações da minha mãe. Tem ervas da medicina tradicional que nós mulheres usamos depois do parto. Nossas mães ou nossas avós que preparam essas ervas para a gente tomar. Tem também outras ervas que retardam a gravidez, mas nem sempre as mais velhas contam por que dão chás para a gente tomar.

Depois que cheguei em casa, minha mãe não me deixou mais levantar e fazer as coisas. Nem nossos maridos podem se aproximar, tem que respeitar o tempo, não mexer com a mulher logo. Só depois de três meses o homem pode voltar a dormir com a esposa. É uma questão de resguardo. Minha família é bem tradicional e seguimos essas orientações. Quando ganhamos bebê, também não podemos usar perfumes e outros cheiros fortes, como hidratante e desodorante dos jurua [não indígenas]. Esses produtos podem fazer mal para o bebê, deixando a garganta inflamada.

Também não pode comer açúcar e sal. Isso faz mal não só para as mães, mas para as crianças recém-nascidas, que acabam consumindo também pela amamentação. Criancinhas tomam somente leite do peito. Frutas como laranja, uva, melancia… não podemos consumir. Frutas muito doces fazem com que a menstruação desça mais cedo, antes do tempo, após o nascimento da criança.

Carne de vaca também é muito perigoso para mulheres depois do parto. Maridos também não podem comer carne de vaca, nem de porco ou peixe. Carne de caça também é proibida, como tatu e cutia. Só paca podemos comer porque não faz mal, já que ela era mãe de Nhanderu. Minha mãe ensina muitas coisas, porque ela cresceu no modo tradicional.

Os mais velhos nos ensinam muito de como devemos viver e se cuidar. Mas hoje em dia está difícil os jovens ouvirem esses conselhos e por isso muitos têm doença mental [inhakanhy]. Esses problemas também acontecem quando se ganha neném, se não tiver o cuidado necessário. Se comemos de tudo, a mentalidade fica afetada, com dores de cabeça e tontura. Um dos remédios para isso é chifre do veado, mas é muito difícil de conseguir.

Sobre essa doença [COVID-19] e outras que estão aparecendo hoje, é difícil saber como cuidar. A gente não sabe muito sobre elas e na vacinação, não vou mentir… tive um pouco de medo. Não só eu, a minha família inteira. Mas no final todo mundo tomou. A gente entendeu que se colocar Nhanderu em primeiro lugar não faria mal para a gente.

Palavras e cuidados de Kerexu Poty Paula da Silva