As comunidades ainda enfrentam problemas para ter acesso à água potável. A pior seca em mais de 120 anos afetou a produção das famílias, resultando em insegurança alimentar

Foto: Osvaldo Melo de Souza

“A maior dificuldade foi que a seca começou no mês de outubro (de 2023) e nós estamos na ressaca dela até hoje. Até agora a gente não tem água de qualidade”. Estas são palavras de Aluízio Silvério dos Santos, da Comunidade Quilombola Tapagem, que descreve vividamente as cenas dos rios secos ainda frescas em sua memória. Mas mais do que isso, ele relata que as consequências da estiagem continuam a afetar profundamente o cotidiano das comunidades quilombolas da região de Oriximiná e Óbidos, no Norte do Pará. O episódio resultou na diminuição do volume dos rios para os níveis mais baixos registrados em mais de 120 anos de observação, de acordo com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

As mudanças climáticas foram o principal fator para estiagem recorde na Amazônia, de acordo com o estudo da World Weather Attribution, organização de cientistas que estuda as causas dos eventos climáticos extremos, divulgado em janeiro deste ano. O fenômeno El Niño também teve papel na estiagem e ainda não se dissipou, segundo Ane Alencar, diretora de Ciência do IPAM e coordenadora do MapBiomas Fogo. A cientista explica que o desmatamento e as queimadas também intensificaram o problema.

A situação é alarmante, pois eventos climáticos extremos estão se tornando cada vez mais comuns, e suas consequências persistem ao longo do tempo. Para os povos e comunidades tradicionais cujos modos de vida têm relação com a floresta, o impacto é ainda mais devastador. Além da dificuldade de acesso à água potável, a mobilidade também foi afetada, já que nessas áreas as pessoas dependem de barcos para se locomoverem.  “Fomos bem menos à cidade. Quando [a água do rio] está normal, geralmente, as famílias fazem a farinha durante a semana e levam na sexta-feira para vender, mas nesse período não dava para ir”, explica Verinha Oliveira dos Santos, da Comunidade Quilombola Cuecé, em Óbidos. O igarapé Grande passa em sua comunidade e se conecta com o Rio Amazonas, de onde é possível chegar até a sede do munícipio.

As pessoas que precisavam ir até a sede do município para receber benefícios sociais, como o Bolsa Família, ou as mulheres grávidas para fazer o pré-natal também enfrentaram dificuldades. Até mesmo o deslocamento das crianças para as escolas dentro dos próprios territórios foi dificultado e, em algumas comunidades, não foi normalizado até hoje.

A insegurança alimentar é outra grande preocupação para os quilombolas de Óbidos e Oriximiná. Aluízio relata que os impactos para as atividades agrícolas: “a gente plantou roça em meio de outubro porque é o costume do quilombola e a roça estava toda morta porque o calor era muito, a terra estava toda ressecada”. E Verinha conta que muitos produtores que vendem para o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o PNAE, tiveram dificuldade para entregar a produção. “Muitos produtores tiveram perdas”.

Associações e comunidades quilombolas de Óbidos e Oriximiná se viram diante de um cenário inédito e buscaram espaços junto à imprensa e apoios de diferentes esferas de governo para enfrentar a situação. Os quilombolas se mobilizaram e, em outubro, 14 organizações divulgaram nota conjunta pedindo apoio. “A gente se uniu, associações e comunidades e, com a o apoio da Comissão Pró-Índio, mandamos uma carta para o governo e conseguimos ir até Brasília para conversar sobre a estiagem”, relata Ari Carlos Printes, coordenador da Associação Mãe Domingas, de Oriximiná. Os diálogos envolveram diferentes órgãos de governo, como Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Ministério da Igualdade Racial e Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar.

Contudo, a resposta do governo demorou a chegar. Cestas de alimentos foram distribuídas, em Oriximiná, somente em dezembro. Em Óbidos, a comida chegou só  agora em abril. “A nossa avaliação é que ajuda não foi suficiente e chegou com muito atraso, diante da emergência em que as comunidades se encontravam. Nós aqui de Óbidos recebemos na semana passada as cestas básicas, que eram para o tempo da seca”, detalha Douglas Sena, coordenador da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Óbidos e Coordenador Regional da Malungu – Baixo Amazonas.

Para Ari, as iniciativas são resultados da mobilização e do diálogo das comunidades com o governo. Porém, ele destaca que esse apoio foi insuficiente “precisamos e muito de ajudas maiores para garantir água de qualidade, apoio para os deslocamentos e assistência à saúde durante a seca”.

Foto: Aluízio Silvério

O que esperar em 2024?

Essa estiagem severa tem afetado até mesmo o período chuvoso na Amazônia – que costuma ocorrer entre novembro e março. Verinha observa que “esse ano foi muito diferente, chove um dia e passa dias sem chover. Para nós que vivemos na região, a gente percebe que a cheia está bem atrasada, tem quem diga que a cheia será muito pequena. Então, pode ser que o verão chegue bem mais cedo, e a seca bem mais forte”.

Essa é também a avaliação de pesquisadores que trabalham com o tema do meio ambiente. Como está chovendo menos na região, quando chegar o período de seca, a quantidade de chuva não terá sido suficiente para recarregar a água no solo, antecipando assim o estresse hídrico. “Isso pode fazer com que o período de seca comece mais cedo. A gente sabe que a seca desse ano vai ser uma seca muito forte porque ela é um resquício da estiagem que começou o ano passado e, por isso, é bem importante que a gente já pense nessas questões”, alerta Ane.

Seu Aluízio se preocupa com as perspectivas para 2024. “Já estão anunciando que vem uma seca terrível, se o governo puder nos ajudar antes dela chegar a gente já estará preparado”.  Lúcia M. M. de Andrade, coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo, reforça o alerta. “Infelizmente, os eventos extremos tendem a se repetir e a se intensificar. É urgente desenhar e implementar programas e políticas para apoiar as comunidades na adaptação à essa nova realidade”.

As comunidades quilombolas esperam que o diálogo com o governo continue e, principalmente, “que possamos ter acesso às políticas públicas para estruturar nossas comunidades para enfrentar a estiagem”, finaliza Ari. Para Douglas é fundamental criar um canal de comunicação direto entre as lideranças quilombolas e os governos federal, estadual e municipal para agilizar a ajuda em fases de emergências. “Nós precisamos criar canais de comunicação entre o governo federal e outros governos, estadual e municipal, com o movimento quilombola para que se encontrem caminhos e seja possível acionar as instituições públicas em casos de emergência de forma mais ágil”.

Reportagem: Bianca Pyl

 

Textos, artes e vídeos da Comissão Pró-Índio de São Paulo estão protegidos pela legislação brasileira sobre direito autoral. A publicação, redistribuição, transmissão e reescrita do conteúdo para uso não comercial é incentivada desde que citada a fonte.
Apresentamos links que direcionam para sites externos. A CPI-SP não se responsabiliza pelo conteúdo desses materiais.