REGULARIZAÇÃO: HISTÓRICO DAS REGULAMENTAÇÕES
A Constituição Federal de 1988 assegurou no artigo 68 do ADCT o direito dos quilombolas à propriedade de suas terras. Direitos territoriais são reconhecidos também na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tem força de lei em nosso país desde 2004.
Cinco Estados preveem em suas constituições o direito à propriedade das terras às comunidades quilombolas: Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso e Pará. Há Estados que não contam com tal dispositivo constitucional, entretanto reconhecem às comunidades remanescentes de quilombolas o direito à terra em legislação infraconstitucional e/ou buscam garantir a sua efetividade por meio de políticas ou programas para regularização das terras. É que ocorre em 10 estados: Amapá, Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Pará, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, e São Paulo.
Foto: S. Curry (2009)
Histórico: Legislação Federal
Data de novembro de 1995 a primeira iniciativa para normatização em âmbito federal do procedimento de regularização dessa categoria de terras: a Portaria Incra n.º 307 que determinava que as comunidades quilombolas tivessem suas áreas demarcadas e tituladas. Sob a égide dessa portaria, Boa Vista, localizada em Oriximiná-PA, foi a primeira comunidade quilombola no Brasil a receber o título de propriedade de suas terras.
Tal regulamentação vigorou até outubro de 1999, quando a 11ª reedição da Medida Provisória 1.911 delegou ao Ministério da Cultura a competência para titular as terras quilombolas. A mudança de competência refletia o posicionamento do governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, de não realizar desapropriações para assegurar a titulação das terras de quilombo.
Em consonância com tal orientação, em novembro de 2000, a Fundação Cultural Palmares (FCP) editou um “pacote de titulações” sem a desapropriação ou anulação dos títulos de terceiros incidentes. Tampouco foi realizada a retirada dos ocupantes não-quilombolas. Dez das doze comunidades “beneficiadas” com esses títulos sofrem até hoje com o conflito e não têm livre acesso aos recursos naturais de suas terras. Mais recentemente, o Incra abriu novo processo para regularizar essas áreas com vistas a proceder às devidas desapropriações e reassentamentos nessas TQs.
Em 10 de setembro de 2001, o ex-presidente Fernando Henrique editou o Decreto nº 3.912 que, ao regulamentar o procedimento para titulação das terras de quilombo, restringiu o alcance do Artigo 68 ADCT. O decreto determinou que somente seriam contempladas pelo artigo 68 as “terras que eram ocupadas por quilombos no ano de 1888” e as que estavam “ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988”. Tal classificação temporal, que não encontrava qualquer respaldo no texto constitucional, restringia enormemente os potenciais beneficiários do artigo 68.
Os principais atingidos pela medida foram os quilombolas de áreas de conflito que na data da promulgação da Constituição não se encontravam na posse de seus territórios, justamente em decorrência das disputas. O resultado do Decreto 3.921 de 2001 foi a completa paralisação das titulações das terras de quilombo pelo governo federal. Nenhuma terra de quilombo foi regularizada na vigência desse decreto.
Normas Atuais
Atendendo à reivindicação dos quilombolas, o governo do então presidente Lula, em 20 de novembro de 2003, editou o Decreto nº 4.887 de 2003. A nova norma criou condições para a retomada das titulações: (a) adotou uma conceituação adequada de comunidade e de terra de quilombo com a adoção do critério da “autoatribuição” ou “autoidentificação”; (b) instituiu a possibilidade de desapropriação de propriedades incidentes em terras de quilombos, quando necessário; e (c) atribuiu a competência de condução do processo ao Incra.
No entanto, em novembro de 2007, a Fundação Cultural Palmares (FCP) editou uma regulamentação para o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos. A Portaria FCP Nº 98 de 2007 tornou o processo de inclusão no cadastro mais burocrático e foi publicada sem qualquer consulta. E ainda, abre a possibilidade para a revisão de certidões já emitidas.
Em 1º de outubro de 2008, o Incra editou a Instrução Normativa Incra nº 49/2008, estabelecendo novos procedimentos para demarcação e titulação. A norma foi rechaçada pelo movimento quilombola e seus parceiros. Foram objeto de críticas: o processo de elaboração e o conteúdo. A nova redação foi acordada apenas entre órgãos do governo federal, sem transparência ou consulta. A consulta prévia convocada pelo governo federal para apreciar medida em abril de 2008 foi questionada por organizações quilombolas e ONGs junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Por meio da alteração de uma norma de aparência meramente procedimental, o governo federal criou vários entraves burocráticos à efetividade de direitos reconhecidos pela Constituição Federal, pela Convenção 169 da OIT e até mesmo pelo Decreto 4.887/2003. O direito a autoatribuição, por exemplo, foi modificado, vez que a nova norma condiciona o início do processo de titulação à Certidão de Registro no “Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos” da Fundação Cultural Palmares. Trata-se de clara deturpação do critério da “consciência de sua identidade”, estabelecido no artigo 1.2 da Convenção 169 da OIT como definidor do pertencimento étnico.
Em 9 de outubro de 2009, as regras do Incra foram novamente modificadas com a publicação da Instrução Normativa nº 56 de 7 de outubro de 2009 que removeu alguns dos empecilhos burocráticos. O movimento de avanço foi rapidamente contido. Treze dias depois, a IN Incra nº 56 foi revogada e a norma de 2008 (a IN 49) foi republicada como Instrução Normativa nº 57 de 20 de outubro de 2009, que vigora até os dias atuais.
Governo Bolsonaro
No primeiro dia de governo (01.01.2019), o presidente Jair Bolsonaro publicou a Medida Provisória 870/2019 que instituiu a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. A MP 870 delegou ao da Agricultura, Pecuária e Abastecimento a competência de regularização fundiária das Terras Quilombolas (a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos).
Já no dia 02.01.2019, foi publicado o Decreto 9.667/2019 que aprova a estrutura regimental do Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O decreto estabelece que o Incra ficará vinculado ao Ministério da Agricultura. A norma determina também que à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários daquele ministério compete formular, coordenar e supervisionar as ações e diretrizes sobre identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos e licenciamento ambiental nas terras quilombolas, em conjunto com os órgãos competentes. Dessa forma, a responsabilidade de licenciamento ambiental em terras quilombolas deixa de ser da Fundação Cultural Palmares.