Para evidenciar como os indígenas estão vivenciando a pandemia de Covid-19, a PARI-c recorre a quem melhor compreende essa realidade: eles próprios.
Ilustração: Xadalu Jukupé
Povos indígenas foram duramente afetados pela pandemia de Covid-19. Segundo os dados mais recentes do monitoramento da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib), foram pelo menos 1.159 indígenas mortos pelo vírus e mais de 57 mil casos confirmados, com 163 povos afetados.
Com a pouca coordenação dos esforços de saúde pública para responder à pandemia, por vezes os indígenas precisaram criar suas próprias estratégias – não só para barrar o vírus, mas também para manter seu bem-estar espiritual em meio à crise. Essas estratégias estão sendo documentadas na Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 (PARI-c), que conta com pesquisadores indígenas e não indígenas na captação das informações.
A plataforma é parte de uma ampla pesquisa sobre as respostas indígenas à pandemia no Brasil. Financiada pelo Conselho Médico de Pesquisa da Agência de Pesquisa e Inovação do Reino Unido (UKRI), é uma parceria entre a Universidade de Londres (City University), no Reino Unido; e Universidade de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Universidade do Sul da Bahia (UFSB) e Universidade de São Paulo (USP), no Brasil.
Segundo a coordenadora da pesquisa, a antropóloga Maria Paula Prates, a intenção é mostrar, de forma autêntica e protagonizada pelos próprios indígenas, como a pandemia foi tratada onde eles vivem, seja nas aldeias ou na cidade. Além de deixar para a posteridade um registro que ajude na orientação de futuras políticas de saúde com povos indígenas. “Não tem como pensar em políticas efetivas de saúde sem levar em conta o que aquele grupo pensa sobre a doença, o risco e os efeitos dela, nem sem comunicação efetiva com as cosmologias envolvidas”, afirma a pesquisadora, que têm um trabalho de longa data desenvolvido junto aos Guarani-Mbya do Rio Grande do Sul e da Argentina.
Exemplo e tradutor para os parentes
A pesquisa acontece ao longo de 2021 em todas as cinco macrorregiões brasileiras, e é realizada de forma totalmente remota, aproveitando vínculos prévios entre pesquisadores e povos indígenas para contatos à distância. No caso dos pesquisadores indígenas, estes atuam em suas próprias comunidades – e para isso recebem os equipamentos necessários, conexão à internet e um auxílio financeiro.
Um desses pesquisadores é Ataide Vherá Mirim, liderança Guarani-Mbya da Terra Indígena Takuari, região do Vale do Ribeira, em São Paulo. Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Litoral Sul (CONDISI LSUL), ele já tinha experiência em compreender as questões de saúde de seus parentes, o que ajudou na realização do trabalho com a Pari-c. Mas isso não quer dizer que ele não esteja aprendendo bastante durante a pesquisa, além de reforçando o conhecimento originário de seu povo.
“É um trabalho que facilitou meu estudo também. Porque a maior parte das falas foi feita na língua Guarani. Eu tive que fazer uma transcrição de cada depoimento, primeiro na língua Guarani e depois traduzir para o português. Um trabalhão, mas um prazer, pois primeiro estou escrevendo em Guarani, fortalecendo a escrita desse idioma, e depois traduzindo”, conta o líder.
Junto a seus parentes, Ataíde tem o desafio de não só ajudar a construir essa ponte linguística e cultural, como também de servir de referência para os que são mais desconfiados com as informações que vêm de fora – por exemplo, com relação à vacina contra a Covid-19. “Eu falo, ninguém é obrigado, mas eu quero ser vacinado. E se eu não morrer, isso quer dizer que tem segurança. Porque tudo que envolve a saúde envolve a nossa espiritualidade também. E eu ter tomado a vacina e ficado bem despertou a preocupação de muitas dessas pessoas que antes não queriam tomar”, relata.
Ataide Vherá Mirim, liderança Guarani-Mbya da Terra Indígena Takuari e pesquisador da Pari-c. Foto: Arquivo pessoal
E não é só de vacina que ele e os outros pesquisadores falam, mas também de outros assuntos bastante sensíveis para seus povos. Como os partos das mulheres indígenas, um momento de grande significado para a espiritualidade dos Guarani, mas que teve a dinâmica alterada pela pandemia. “A gente está ouvindo mulheres para ver como elas agiam para ter filhos antes, e se houve mudanças. Conversamos também com os parteiros e parteiras tradicionais, que também são líderes espirituais, e tanto eles como as mães têm essa dificuldade de compartilhar a experiencia. Então tento levar não como uma entrevista, mas uma conversa mesmo, e eles acabam contando algumas coisas”, explica.
Plataforma empodera pesquisadores indígenas
Ataíde é um dos 45 pesquisadores indígenas que atuam na Pari-c, junto com outros 50 não-indígenas – a paridade entre os dois grupos, assim como a entre gêneros, é um dos princípios da iniciativa. Separados em equipes regionais, eles publicam mensalmente notas de pesquisa, com os relatos mais imediatos de suas descobertas. A partir de setembro, serão publicados nove estudos de caso, com avaliações mais aprofundadas sobre temas como o papel das mulheres nas respostas à pandemia e os diferentes entendimentos sobre o distanciamento social, entre outros.
Mas não é preciso ter uma atuação prévia na academia nem na saúde indígena para participar. “Temos pesquisadores indígenas leigos e treinados. Muitas dessas coletas se dão apenas por via oral. Eles nos enviam áudios, relatam como foi a conversa. A gente vê a melhor forma de tratar, lemos pra eles os relatos escritos, e, se estiver tudo certo, publicamos as notas”, explica Maria Paula Prates. As notas publicadas, inclusive, acompanham sempre uma versão em áudio, para aqueles que preferem escutar o conteúdo.
Para ela, apoiar e fortalecer a voz dos indígenas – pesquisados e pesquisadores – em meio à pandemia pode ajudar mais pessoas a enxergar que, embora a medicina ocidental seja fundamental para superar essa crise, ela pode ser de pouca ajuda se não for buscada uma compreensão de como ela é recebida pelos povos originários. “A gente vê que os agentes de saúde são muito mais capturados pelo ponto de vista biomédico do que pelas decisões tomadas de forma conjunta. E que as equipes multidisciplinares que estão dispostas a ter essa comunicação mais compreensiva, a entender as posições dos indígenas sobre a pandemia e a vacina, têm resultados melhores”, diz.
Pesquisa deixará legado
Com prazo definido para terminar o trabalho – a pesquisa sobre respostas indígenas à pandemia vai até o final deste ano, e a Pari-c ficará no ar por 5 anos –, Maria Paula espera que ele possa servir como inspiração e fonte de informações para iniciativas futuras. “Essa pesquisa é de impacto pontual. Tem o objetivo de levantar testemunhos e relatos, e muitos deles a gente nem tem como analisar 100%. Mas a ideia é que isso fique público para que outros colegas, indígenas e não indígenas, tenham acesso e possam usar para estudos futuros”, diz.
Para facilitar esse intercâmbio futuro, um livro será produzido reunindo as notas de pesquisa em português e inglês, além do conjunto de dados que forem coletados até então – mesmo que não forem tratados de forma aprofundada. A publicação será distribuída dentro e fora das aldeias para que outros possam, no futuro, usá-la para pensar novas iniciativas para a promoção da saúde indígena.
Para Ataíde Vherá Mirim, participar da Pari-c já rendeu aprendizados importantes. “Quando se faz um trabalho assim, compreensivo com os indígenas, abre a oportunidade de fazer outras coisas mais na frente. Fica uma experiência boa que eu tive, e a intenção de continuar levando diálogo, boas ideias para que tenhamos sempre essa preocupação no futuro.”