Quilombolas, índios e ribeirinhos no Norte do Pará relatam os desafios do isolamento social em um contexto amazônico. ‘Ficar em casa’ pode significar falta de acesso a remédios de uso contínuo, a comunicação, a energia e a impossibilidade de resgatar a aposentadoria ou o Bolsa Família
As grandes extensões, a precariedade do transporte público, de comunicação e do sistema de saúde representam desafios extras no combate ao coronavírus nas Terras Indígenas, Quilombolas e Ribeirinhas dessa região. Foto: Carlos Penteado.
“A gente se organizou e estamos de quarentena, passando até dificuldade, a gente está muito triste porque essa é uma doença [Covid-19] muito ‘transmissora’. Estou com medo por causa da minha idade”. A preocupação relatada por Aluízio Silvério dos Santos, 70 anos, da Comunidade Quilombola Tapagem é sentida nas diversas comunidades quilombolas, ribeirinhas e indígenas de Oriximiná e Óbidos, norte do Pará.
Se precisarem de assistência médica, os moradores da comunidade de Aluízio deverão percorrer 10 a 12 horas de barco até a sede do município de Oriximiná, onde a rede hospitalar dispõe de um único respirador e nenhuma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para atender os seus 73.096 habitantes. Em Óbidos, município vizinho, a situação é parecida, apenas um respirador da rede pública para uma população de 52.137 habitantes. E nenhum leito de UTI.
Segundo o IBGE, Oriximiná é o 4º maior município do Brasil, com uma extensão maior que Portugal, e Óbidos ocupa o 32ª lugar em área territorial, o que corresponde a uma área quase cinco vezes maior que o Distrito Federal. As grandes extensões, a precariedade do transporte público, de comunicação e do sistema de saúde representam um desafio extra no combate ao novo coronavírus nas Terras Indígenas, Quilombolas e Ribeirinhas dessa região.
O último boletim da Secretaria Municipal de Saúde de Óbidos (05/05, às 19h) aponta a existência de 5 casos confirmados, incluindo 1 óbito. Na mesma data, a Prefeitura de Oriximiná informava 7 casos confirmados, 2 óbitos e outros 12 casos em análise.
A vida das famílias quilombolas, ribeirinhas e indígenas foi bastante alterada com o isolamento social. Foto: Carlos Penteado
Comunidades fechadas e rotina alterada
Desde março, associações indígenas, quilombolas e ribeirinhas em Óbidos e Oriximiná têm orientado todos a ficarem em casa por meio de comunicados oficiais e um trabalho de conscientização nas comunidades. “Tem tido uma mobilização muito grande entre os próprios povos indígenas, as organizações e os parceiros para que a gente possa somar os esforços para que os povos indígenas tenham segurança e garantia do não avanço do coronavírus nos territórios.”, contou Ângela Kaxuyana, coordenadora tesoureira da Coordenação das Organizações dos Indígenas Amazônia Brasileira (COIAB), da TI Kaxuyana-Tunayana, uma das quatro Terras Indígenas em Oriximiná.
No quilombo Boa Vista, as lideranças têm reforçado o apelo para que as pessoas das 155 famílias quilombolas fiquem em casa. “Estamos orientando para não sair mesmo, a fazer a limpeza dos alimentos e a higienização das mãos. Estamos com atenção redobrada com os idosos e com as crianças. Na nossa comunidade não está tendo aglomeração, sem reuniões, escola e igreja fechadas”, explica Miracelia Santos de Souza, liderança comunitária.
A proximidade do Quilombo Boa Vista com a vila da Mineração Rio do Norte, que segue com suas atividades, é um desafio extra no isolamento social. “O que é preocupante é que a gente se fechou aqui na comunidade, mas a mineração não se fechou completamente”, conta Amarildo Santos de Jesus, coordenador da comunidade. Ele conta que a circulação de barcos e navios prossegue para abastecimento da vila de funcionários e o embarque do minério. A situação é especialmente delicada uma vez que, segundo Amarildo, “70% da nossa comunidade trabalha lá dentro e volta diariamente para a nossa comunidade”.
A vida de quilombolas, ribeirinhos e indígenas foi bastante alterada com o isolamento social. “Está sendo difícil porque nunca tínhamos passado por isso”, desabafa Andréa dos Santos Alves da comunidade quilombola Muratubinha, que fica a duas horas de viagem da sede do Município de Óbidos. “São várias dificuldades, a gente estava acostumado em uma rotina e agora tem que mudar o dia a dia porque devido o acesso para chegar até na cidade, as dificuldades que estão surgindo”, complementa Andréa.
Aluízio também comenta sobre a dificuldade que é ter seu cotidiano modificado especialmente em comunidades onde a convivência social é intensa. “Estou com minha família, mas estamos meio distantes [um do outro], a gente não está acostumado.”
Quilombo em Oriximiná. Foto: Carlos Penteado.
Isolamento social dificulta o atendimento de saúde
O necessário distanciamento social tornou o acesso ao sistema de saúde ainda mais difícil para quilombolas e ribeirinhos. “Antes o atendimento vinha todo mês na comunidade e agora deixou de vir e isso atrasa o tratamento dos diabéticos, dos hipertensos, das grávidas, das crianças que tinham que tomar vacina”, relata a quilombola Andréa dos Santos Alves, agente de saúde na comunidade quilombola Muratubinha, em Óbidos, onde moram 59 famílias.
No mesmo município, na comunidade quilombola Arapucu – que fica a mais de uma hora de barco da sede do município de Óbidos – Catarina Soares Franco, agente de saúde e liderança da associação comunitária, conta que os atendimentos estão mais restritos, mesmo para quem consegue ir até a sede do município. “Os atendimentos de saúde ficaram mais complicados agora, na comunidade tem uma unidade básica de saúde que funciona somente com uma técnica de enfermagem. Não tem atendimento médico, esses atendimentos são feitos na cidade e, por conta da pandemia, estão restritos para evitar aglomeração de pessoas”, explica a agente de saúde quilombola cuja comunidade é constituída por 79 famílias.
A compra de remédios para tratamentos de doenças crônicas faz com que muitos ainda tenham que se deslocar aos centros urbanos. Porém, a suspensão dos “barcos de linha” pelas autoridades nos dois municípios por conta das medidas de contenção do vírus, tornaram as idas até a cidade ainda mais difíceis.
Evanilson Marinho de Figueiredo, presidente da Associação das Comunidades das Glebas Trombetas e Sapucuá (ACOMTAGS), ribeirinho de Oriximiná, cobra uma ação do governo para que as pessoas possam continuar seus tratamentos de saúde. “Precisamos de uma política voltada para distribuir medicamentos nas comunidades. As pessoas hipertensas que já fazem tratamento e estão no grupo de risco sofrem mais”, pontua a liderança da associação que representa as mais de 700 famílias que residem no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Trombetas-Sapucuá.
Já os moradores das aldeias das quatro Terras Indígenas da região contam com o apoio Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Ângela Kaxuyana (COIAB) reconhece a importância desse apoio nos territórios, principalmente, para fazer o monitoramento do contágio nas aldeias, mas aponta que, “por outro lado, temos a situação de indígenas que estão no contexto urbano, seja para fazer tratamento de saúde, para estudar, para acessar alguma política ou mesmo alguns que não conseguiram retornar aos territórios indígenas por causa da quarentena.”
Quilombo em Óbidos. Foto: Carlos Penteado.
Segurança alimentar impactada
Em algumas comunidades é possível assegurar parte importante da alimentação por meio dos produtos da roça, da pesca ou caça, além do extrativismo. “Como aqui é um lugar farto, com peixe, farinha, a gente fica comendo peixe assado e açaí e vamos ficar até o fim dessa doença, que ela não chegue aqui para nós”, relata Aluízio do quilombo Tapagem.
Todavia, essa não é a realidade de todas a comunidades quilombolas no Pará. “Ficar em casa sem condição não é bom porque as pessoas precisam sair para procurar comida. Algumas comunidades têm fartura de peixe e caça, mas nas comunidades que ficam mais próximas das cidades, as coisas já são mais difíceis, elas têm mais dificuldade, mais necessidade”, relata José Carlos do Nascimento Galiza, da coordenação executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).
Ângela Kaxuyana (COIAB) explica que no Brasil há aldeias em que é possível pescar e caçar, contudo, alguns territórios não permitem a produção própria dos alimentos. “Tem territórios que estão totalmente invadidos e não tem local para caçar e pescar, e você encontra uma dificuldade de acesso à alimentação”, detalha Ângela.
Além disso, alguns gêneros alimentícios e produtos de limpeza só estão disponíveis na cidade. Para o ribeirinho Evanilson, da ACOMTAGS, é justamente a falta de acesso aos alimentos que faz com que as pessoas não consigam se manter em isolamento. “A Prefeitura tem fornecido cestas básicas para a população da zona urbana, mas na zona rural não temos nada. A Mineração Rio do Norte vem atendendo seis comunidades com as cestas, mas ficam faltando serem atendidas 25 comunidades. Isso faz com que as pessoas não consigam ficar totalmente em isolamento domiciliar.”
Em algumas comunidades é possível assegurar parte importante da alimentação por meio dos produtos da roça, da pesca ou caça, além do extrativismo. Todavia, essa não é a realidade de todas a comunidades. Foto: Carlos Penteado.
Perda de renda
Devido ao isolamento social, as restrições de transporte entre as comunidades e as cidades, ribeirinhos, índios e quilombolas não conseguem escoar e comercializar a sua produção. “As comunidades têm relatado que a quarentena impede as pessoas de se deslocarem para vender seus produtos na sede do município, o transporte foi cancelado, então as pessoas estão produzindo, mas não conseguem vender”, problematiza Galiza, da CONAQ.
É o que acontece na comunidade quilombola Arapucu, em Óbidos, onde a comercialização do peixe é importante fonte de renda. Davi Silva, coordenador da Associação de Remanescentes de Quilombo da Comunidade Arapucu, aponta essa dificuldade. “Com essa questão do Covid-19, as pessoas não puderam mais ir pescar por conta da dificuldade de vender o peixe, de escoar a sua produção”, explica.
O impacto na renda é sentido também com a dificuldade de ir até a cidade receber o salário (no caso de professores e agentes de saúde), realizar saque de aposentadorias e do Bolsa Família e, até mesmo, do auxílio emergencial liberado recentemente pelo governo federal.
Muitos quilombolas relataram problemas para se cadastrar no auxílio emergencial. “Uma dificuldade muito grande é o acesso ao trâmite do auxílio, uma hora a internet não funciona, outra o sistema fica fora do ar. Muitos não tinham conta na Caixa ou no Banco do Brasil e precisaram fazer a conta digital, mas não conseguiram concluir o processo”, conta Douglas Sena dos Santos, agente da Pastoral Social da Diocese de Óbidos, quilombola da comunidade Arapucu.
Acesso restrito à comunicação
Assegurar a comunicação é outra questão sensível relatada pelos entrevistados e entrevistadas nessa reportagem. A maior parte das comunidades não conta com acesso à rede de telefonia ou internet ou tem acesso bastante precário.
Outra dificuldade é que a maior parte das comunidades não tem acesso à rede elétrica. A eletricidade depende de geradores abastecidos com diesel que é cada vez mais difícil de ser obtido devido às restrições dos deslocamentos para a cidade. Sem diesel não há eletricidade, não há acesso à internet, e nem se pode carregar os celulares. “Comprar óleo para o gerador, para ter a internet, é uma das maiores dificuldades”, conta Aluízio, que é conselheiro da Associação Mãe Domingas.
Distribuição do folheto nas comunidades ribeirinhas com o apoio da Associação das Comunidades das Glebas Trombetas e Sapucuá (Acomtags). Foto: Evanilson Marinho
Dificuldade de acesso à informação
Segundo os entrevistados nem todas as comunidades têm recebido orientações sobre as formas de se prevenir da Covid-19. “Não tem orientação da área de saúde para estar conversando sobre a prevenção. Outras comunidades não têm esse apoio e acesso às informações é difícil para eles”, conta Miracelia Santos de Souza, da comunidade quilombola Boa Vista.
“As informações que recebo pelo celular eu repasso, vou até a área perto do rio que pega o celular. É dessa forma que tenho repassado as informações. Eu entreguei os folders [produzidos pela Comissão Pró-Índio e a Diocese de Óbidos] nas casas, falando das medidas de prevenção. Eu como agente de saúde oriento, tiro dúvidas”, explica Andréa do Quilombo Muratubinha.
Outro desafio é ter acesso a notícias confiáveis, em linguagem didática e adaptadas à realidade local, como lembra Ângela Kaxuyana, “Há uma dificuldade para a informação chegar ao território e no contexto da Amazônia em uma linguagem que os indígenas possam dominar e entender o que está acontecendo, estamos falando de diversidade de línguas, de territórios que não têm acesso à internet, tem territórios que usam só rádio, como fazer com que as informações cheguem de fato e fazer um filtro para que as fake news não cheguem nos territórios”, pondera Ângela.
Invasões
Se quilombolas, índios e ribeirinhos se esforçam para cumprir o isolamento social, o mesmo não ocorre com os invasores. “Nossa grande dificuldade hoje é controlar a vinda de pessoas que moram na cidade aqui para o nosso território. Final de semana vem muita gente da cidade”, reclama Davi, coordenador da associação do Quilombo Arapucu. A comunidade elaborou um ofício proibindo a entrada de pessoas. “Levamos na rádio para que essa orientação fosse divulgada. A comunidade não está conseguindo proibir a entrada de pessoas vindas da cidade ou de outros municípios”, conta Catarina, vice coordenadora da associação de Arapucu. Os quilombolas também colocaram placas na estrada pedindo para que as pessoas não entrem em seu território.
Problemas semelhantes estão sendo vivenciados pela Comunidade Pancada, em Oriximiná. Em 1º de maio, a comunidade expediu um ofício requerendo o apoio das autoridades para impedir a entrada de turistas e garimpeiros em seu território.
Seja em virtude do sistema precário de saúde ou por conta da dificuldade de se locomover até a sede dos municípios, a prevenção se torna ainda mais fundamental para as comunidades quilombolas, ribeirinhas e povos indígenas dessa região da Amazônia. Mas para isso é necessário garantir que suas necessidades básicas – alimentação, remédios, renda e informações de qualidade e acessíveis – sejam asseguradas assim como a proteção de seus territórios.