Fonte: Brasil de Fato

Uma população de 21 mil pessoas. Essa é a estimativa de indígenas que vivem hoje na Grande São Paulo, o maior conglomerado urbano do país. Mas para muitas destas famílias, a vacinação contra a covid-19 não tem sido efetivada.

Desde o início da imunização, as comunidades indígenas urbanas foram deixadas de fora do grupo prioritário e o Ministério da Saúde resiste em viabilizar uma solução.

Quase um mês após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a prioridade na vacinação para indígenas que vivem nas cidades ou em terras não homologadas, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do governo federal, não orientou o cumprimento da medida. Esse grupo representa mais da metade da população indígena no país.

“Eu fui contaminada, eu e toda minha família, no total 15 pessoas. Até minha netinha de 6 anos. O mais grave foi o meu marido. Eu, com 40% do meu pulmão comprometido, o meu marido 50%”, afirma Alaíde Xavier Feitoza, liderança do povo Pankararé, que vive há mais de 40 anos, em Osasco (SP).

No território Indígena do Xingu, o Brasil de Fato reportou até casos de perseguição e demissão de profissionais de saúde que decidiram imunizar, por conta própria, indígenas “não aldeados”.

A determinação do ministro Luís Roberto Barroso, no dia 16 de março, prevê que, no caso dos indígenas urbanos, apenas quem sofre “barreira de acesso ao SUS [Sistema Único de Saúde]” deve ser priorizado na imunização.

O trecho, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), deixa brechas para que a orientação não seja cumprida. A Apib entrou com recurso para que o ministro esclareça esse ponto, além de outros itens do texto.

Hoje, a iniciativa de priorizar a vacinação de indígenas em áreas urbanas, portanto, está nas mãos da boa vontade de estados e municípios.

Osasco e Guarulhos

Em Osasco, mesmo com uma população de 1,2 mil indígenas, a prefeitura decidiu não vacinar indígenas do contexto urbano.

“Não tivemos direito à vacina. Tive reunião com a secretaria de saúde e ela passou isso para a gente, que mesmo que tivesse vacina ela não ia dar vacina na gente”, afirma a liderança Pankararé, que veio para São Paulo após a assassinato do pai por posseiros no sul da Bahia.

A 36 km do município, a realidade é diferente. Mesmo antes da decisão do ministro Barroso, a Prefeitura de Guarulhos buscou maneiras de vacinar sua população indígena, a segunda maior do estado segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). No total, foram 210 famílias vacinadas.

A imunização foi possível pelo protagonismo de indígenas que compõem a secretaria de saúde do município e o auxílio da Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpin Sudeste).

“O governo quis sim excluir os indígenas do contexto urbano. Não significa que ele saiu do seu estado de origem que ele deixou de ser indígena, porque nós não temos limites. Por mais que tenha limite entre São Paulo e Minas, nós não temos o nosso limite, porque tudo é terra indígena. Tudo era uma vez. Hoje são selvas de pedras”, afirma Pedro Pankararé, agente de saúde indígena de Guarulhos – que conta hoje com duas Unidades de Básica de Saúde (UBS) com atenção à saúde indígena.

Vacinação negada

Na capital paulista, onde somente nas Terras Indígenas Guarani, Jaraguá e Tenondé Porã, vivem 1.711 indígenas, Dayane Nunes e mais nove indígenas da etnia Tukano tiveram a vacina recusada na UBS da Cidade Vargas.

Ela chegou a enviar a lista com os nomes homologação do STF por e-mail e mesmo assim não foi atendida.

“Passei a relação dos nomes, dos adultos, passei os documentos, e aguardei. Ela disse que ia retornar em três dias. Aí quando ela retornou já disse que não tinha autorização do município e que estava seguindo a orientação, que é vacinar mesmo só quem mora nas comunidades [indígenas], e área urbana ainda não podia solicitar”, afirma a indígena, que vive na região do Jabaquara e hoje sobrevive da venda de artesanatos em sua rede social.

Em dezembro, a taxa de mortalidade por covid-19 entre indígenas era 16% superior à mortalidade geral do Brasil, de acordo com Apib. Até o momento, são 1.034 indígenas mortos e 163 etnias afetadas pela doença.

Precariedade histórica

Historicamente, a perda dos territórios tradicionais, a falta de renda e a escassez de terras produtivas são os motivos que fazem famílias inteiras migrarem para a Grande São Paulo.

De acordo com a legislação, a Sesai é quem presta atenção primária de saúde nas Terras Indígenas (TI’s) – por meio dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI’s) –, cabendo aos indígenas urbanos, os serviços convencionais do SUS.

Os indígenas que chegam à região, porém, têm mais dificuldades para ter acesso aos serviços do SUS. Muitos vivem em terras não demarcadas ou em locais precários, sem acesso à água potável ou saneamento básico.

Rafael Martins, representante da Regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), analisa que a falta de políticas públicas para a população indígenas nas cidades é um problema antigo, que foi agravado pela crise sanitária.

“A vacina é o grande pedido agora, mas as comunidades enfrentam a ausência do que é básico. Ausência de água, máscara, enfermeira que vá até o território, carro para fazer transporte emergencial. É uma situação crítica total que a gente está vivendo.”

“A gente ainda não sentiu como a decisão do Barroso repercutiu aqui na ponta”, completa Martins.

Outro lado

Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Sesai informou que cabe aos serviços municipais ou estaduais de saúde a imunização de indígenas do contexto urbano, conforme o cronograma de cada localidade.

A secretaria disse também que, dentro do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19, já imunizou com a primeira dose 73% da população indígena a partir de 18 anos e 52% com a segunda dose.

O Brasil de Fato entrou em contato com as Prefeituras de Osasco (SP) e São Paulo (SP), mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.