Fonte: PARI-C

por Ataíde Gonçalves Vilharve Vherá Mirim

Como parte da equipe Brasil Meridional na pesquisa: Respostas Indígenas à COVID-19 no Brasil: arranjos sociais e saúde global, venho acompanhando relatos de parentes de outras comunidades guarani e de outros povos sobre a pandemia. Os parentes de minha comunidade também compartilharam suas experiências comigo e com as pesquisadoras não indígenas da equipe. Mas nesta nota de pesquisa, quero compartilhar minha própria experiência com a COVID-19. Vou contar como essa mba’eaxy (doença) chegou na minha comunidade e, depois, como ela chegou no meu corpo. Na parte final, retomo minha história desde o começo, quando vim ao mundo sem nem imaginar que no futuro passaria por um pesadelo monstruoso, em que a chegada da pandemia quase interrompeu minha caminhada aos 34 anos. Mas um sonho no hospital me ajudou a seguir vivendo e a contar essa história.

Eu vivo na região do Vale do Ribeira, no estado de São Paulo, onde existem muitas comunidades tradicionais como quilombolas, caiçaras e aldeias do povo Guarani. As primeiras aldeias dessa região que tiveram COVID-19 são do município de Iguape, e de lá essa mba’eaxy foi se espalhando rapidinho. A gente alertou o pessoal para não fazer mais festas ou jogos de futebol entre as aldeias e conseguimos segurar a pandemia por alguns meses, mas uma hora ocorreu a contaminação. Aqui na aldeia Takuari, onde moro, no comecinho a gente fechava o portão, mas precisávamos encontrar um xondaro (guardião) para cuidar da entrada. Eu brincava assim: “quem quer ser o menino da porteira?”, e os jovens falavam: “mas o que eu vou fazer na porteira o dia inteiro?”. Aí um deles disse: “minha casa é pertinho da porteira, então eu posso ficar o dia inteiro, eu levo água gelada, fico lá, mas eu quero crédito no celular, aí eu fico lá acessando”. Todo mês a gente fazia vaquinha e colocava crédito para ele, mas então outros quiseram também: “ó, é minha vez!”. Aí trocava o xondaro e ele pedia crédito. Eles ficavam jogando no celular o dia inteiro, por isso queriam crédito. E daí veio um problema junto com a pandemia, que é o fechamento dos jovens no celular. A tecnologia pode ser uma forma de conexão, mas também pode ser uma forma ruim de distanciamento que aumentou com a COVID-19. A pessoa pode se distanciar da comunidade e dela mesma, ter doença mental, inhakanhy. Até alguns casos de suicídio de jovens aconteceram nesse período de pandemia.

Com doença mental, ou quando você não está bem espiritualmente, acho que a COVID-19 pega mais forte. No final de 2020, nós perdemos o professor e liderança Werá João Lira, da aldeia Itapuã, no município de Iguape, que é cunhado do cacique Timóteo, após quase duas semanas internado por COVID-19. Seus familiares pediram para ele ser enterrado aqui na Takuari e, no dia do enterro, todos da aldeia estavam espiritualmente fragilizados. Pouco depois disso, o cacique Timóteo, que é meu sogro, e meu irmão Dirceu, ficaram de cama. Eu fiquei doente depois de dois dias do enterro. Nesse dia, acompanhei um médico e uma enfermeira da equipe de atendimento da Saúde Indígena a um núcleo familiar onde todos testaram positivo, mas já estavam melhor. Mais tarde, quando voltei para casa, me senti mal, com febre e dor de cabeça.

No dia seguinte, pedi ao Agente Indígena de Saúde (AIS) da aldeia para me levar à Unidade Básica de Saúde (UBS) do município para fazer o teste para COVID-19. Deu positivo, e nos dias seguintes fui ficando cada vez pior. O cacique ligou para a equipe de saúde vir me visitar e o médico solicitou uma ambulância do município para me levar ao Pronto Socorro de Eldorado. Mais tarde, fui transferido para o Hospital Regional de Pariquera-Açu, onde passei por baterias de exames. Eu estava na maca, sem forças, estava tudo mole, e ouvi um enfermeiro jovem falando para os colegas dele: “ó, estou com um índio aqui e eu acho que ele vai ser mais um, hein… está aqui para morrer”. Eu acho que ele falou assim porque pensou: “ah, é um índio, não entende nada…”. No outro dia, eu fui piorando, tentei tomar banho e não consegui por conta de muita falta de ar, então eles falaram: “precisa transferir para o hospital de Registro”. Um paciente recebeu alta e então eu fiquei internado ali por oito dias, alucinado de tanto tomar medicamentos. O doutor falou que o meu pulmão foi afetado em 40%, mas como eu não fumo cigarro, só petyngua (cachimbo), e jogo futebol, sou jovem ainda e forte, isso ajudou. “Mas se bobear a doença vai te ganhar”, o médico falava. No quinto dia eu estava apavorado porque a minha saturação estava baixa e eu estava alucinado porque toda hora o pessoal tirava sangue, aplicando medicamento, então eu pensava que eu não conseguiria mais sair do hospital. Aí tinha a doutora, uma japonesa com quem fiz amizade, que falou: “não fica tão preocupado, porque muitas vezes as pessoas perdem para esse problema porque ficam apavoradas e não controlam a ansiedade”. Eu estava sem me alimentar direito, não comia nada, um pãozinho com chá era o que eu conseguia comer. Eu fui fortinho e gordinho antes da COVID-19, e dentro de quatro ou cinco dias estava só pele e osso.

Naquela noite, fiquei concentrado em Nhanderu (divindade) na cama, aí quando eu dormi, já era quase pela manhã, no sonho eu vi o finado João Lira entrar no quarto onde eu estava. Ele ficou olhando para mim e falou: “ô xondaro, não se preocupa, eu sei que você acredita muito, não é por acaso que você tem o dom de fazer benzimento e curas para quem necessita da sua ajuda, e você vai voltar para casa, você vai vencer essa mba’eaxy, você vai ter a oportunidade que eu não tive, eu perdi essa oportunidade, primeiro por parte dos familiares, eu não tive a preocupação e os cuidados que deveria, você teve, e te socorreram a tempo, então você vai voltar para casa, e você vai ter a oportunidade de se tornar melhor ainda do que você já é, então seja bom para seus parentes, para todo mundo, vai trabalhar em prol da comunidade que você vai vencer”.

No outro dia, eu acordei bem e falei para a enfermeira: “será que você não consegue dois pães para mim?”, e ela trouxe. Eu estava sem celular, sem nada, e um tempo depois, perguntei: “já é horário de almoço?”, ela riu e falou: “não, ainda são 10 horas! Por quê, você está com fome? Isso mesmo, tem que comer, ficar bom, forte, voltar para casa, com certeza tem pessoas na sua casa que estão esperando o seu retorno”. Antes não era assim… no almoço chegava aquele marmitex bem recheado e eu não comia. Mas a partir desse dia eu comia o meu e o de uma pessoa ali do lado que não comia, então passei a comer bastante e dentro de cinco ou seis dias já estava melhorando. O doutor veio, fez a avaliação e falou: “você está melhor sim”. Fiquei andando por todo o corredor, a respiração foi melhorando, aí dentro de sete dias o doutor falou: “se você continuar desse jeito, amanhã à tarde está liberado para ir”. Quanto mais o pessoal falava assim, eu ficava melhor comigo mesmo para retornar logo para casa. Deu oito dias, à tarde ele veio e me avaliou: “você está bem, mas vamos ficar mais uma noite? o pessoal fica cuidando de você, aí amanhã você é liberado”. Eu falei: “tudo bem, é pouco tempo aqui ainda, mas traga mais marmita, bem cheia”.

Eu estava cabeludo e o pessoal falava: “você não quer que corte seu cabelo? Vamos te deixar bonito para você voltar para casa, sua esposa está lá, você está feinho, cabeludo, barbudo”. Mas eu respondi: “não, minha barba é minha marca reconhecida”. Aí o pessoal do hospital cantava: “índio, teus cabelos nos ombros caídos… negros como a noite que não tem luar…”. Eles ficavam conversando comigo e eu falava da minha trajetória política, como uma atividade em Brasília no começo de 2009 com o presidente Lula junto com o Barack Obama. Eu contava sobre isso e eles falavam: “nossa, que legal! você é viajado, conheceu até presidente dos Estados Unidos!”. Eu ficava contando história à noite e o pessoal se juntava ali. No outro dia, antes de voltar para casa, o pessoal cantou novamente “índio, seus cabelos nos ombros caídos…”, e até hoje estou sem cortar os cabelos!

A volta para casa não foi fácil, pois passei a me sentir muito esquecido. Eu me distraio com facilidade e não consigo me lembrar das coisas. Também me canso muito mais do que antes e não posso tomar chuva que já adoeço. Mas tive uma grande força para driblar tudo isso com a chegada do meu primeiro neto, filho do Liedson, meu filho do primeiro casamento. Esse xondaro’i (pequeno guardião), assim como outras crianças que nasceram nesse tempo de pandemia, trouxe esperança para mim, para toda a família e para a Tekoa Takuari. Também tenho buscado mais concentração e fortalecimento da espiritualidade, ajudando meus parentes que não estão bem aqui na aldeia e aqueles que estão em outras comunidades. Tento ajudar com benzimentos na casa de reza e pela minha atuação como presidente do Conselho de Saúde Indígena do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Litoral Sul.

Voltando o filme para o início

No dia 07 de novembro de 1985, 34 anos antes da pandemia, eu nasci no Tekoa Oco’y, no município de São Miguel do Iguaçu, Paraná. Com apenas cinco dias de vida, meus pais Cecílio Vilharve e Bernardina Gonçalves deixaram a aldeia comigo e mais três irmãos. Fomos para a aldeia Pinhal, na Terra Indígena Rio das Cobras, no município de Espigão Alto do Iguaçu, também no Paraná. Moramos por 2 anos em um lugar chamado Caçador e, ainda no Paraná, tivemos passagens pelas aldeias de Rio D’areia – no município de Inácio Martins, onde o meu irmão caçula nasceu – e Tapixi, aldeia vizinha da Pinhal. Aos 7 anos, minha família se mudou da aldeia Tapixi para a recém-formada aldeia de Itaxi Mirim, no município de Paraty, no Rio de Janeiro. Já aos 10 anos de idade, nos mudamos para a aldeia Boa Esperança, no Espírito Santo. Eu tive sete irmãos, sendo os três mais velhos só por parte de mãe, mas dois deles morreram.

Não tive muita oportunidade de viver como adolescente, pois aos 13 anos já me tornei uma liderança e tive um casamento arranjado por parte da família dela. Com isso, veio uma filha e dois anos mais tarde veio o filho, mas infelizmente houve a separação. No final de 2004, fui para as festividades de final de ano na aldeia Morro da Saudade (Barragem), hoje mais conhecida como Tenonde Porã, no extremo sul da capital de São Paulo, e fiquei por lá, onde ajudava as lideranças. Três anos e meio depois, tive uma nova união com a filha mais nova do cacique Timóteo, com quem tive um filho, hoje com 14 anos. Minha esposa Luiza da Silva hoje é professora da Escola Estadual Indígena da aldeia, sendo formada em pedagogia, e está cursando pós-graduação na Universidade Cruzeiro do Sul.

Ajudei a Comissão Guarani Yvyrupa, que é uma importante organização dos Mbya Guarani da região Sul e Sudeste que teve reconhecimento jurídico em 2007. Também me tornei cacique e participei de muitos encontros sobre juventude indígena, questões ambientais, territoriais e mudanças climáticas. Em 2013, a família de meu sogro e outras famílias saíram de Tenonde Porã para fundar uma nova tekoa (aldeia), a Takuari, no município de Eldorado, no estado de São Paulo. Nessa nova aldeia, passei a atuar como liderança buscando nossos direitos nas áreas da saúde e da educação. Criamos a escola e também vagas para Agente Indígena de Saúde (AIS) e Agente Indígena de Saneamento (AISAN). Fui indicado para compor o Conselho Local de Saúde Indígena de Registro como representante da aldeia Takuari. Entre 2015 e 2016, fui assessor parlamentar na representação indígena do estado de São Paulo na Câmara dos Deputados e desde 2016 sou do Conselho Distrital de Saúde Indígena do Litoral Sul, atualmente no cargo de presidente.

No começo de 2015, sofri um grave acidente quando estava retornando da aldeia Rio Silveiras, no litoral norte do estado. Eu estava com muito sono, então parei o carro e fumei petyngua. Em seguida, peguei o celular e escrevi uma mensagem para minha esposa prevendo o que aconteceria, mas depois apaguei a mensagem. De volta à estrada, passando por Registro, tudo ficou em silêncio e escureceu. Quando abri os olhos, pedaços de vidro quebrado passavam voando para todo lado e o carro capotou quatro vezes até parar em uma árvore cheia de cipós. Graças a Nhanderu, todos estavam com cinto de segurança, então o carro deu perda total, mas nada grave aconteceu com os passageiros. Então disse para mim mesmo: “eu nasci de novo”.

Desde então, busquei trabalhar cada vez mais pelo meu povo e participei da formação do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira. Há pouco, organizamos a Rede de Comunicadores Populares do Fórum e criamos a Mídia Mbya nas redes sociais, que hoje faz a cobertura de várias mobilizações indígenas na luta por seus direitos em Brasília e nos territórios.

Em 2020, quando veio a pandemia, comecei minha graduação na área de Tecnologia em Gestão Pública pela Universidade Nove de Julho. Eu não tinha começado ainda o ensino superior porque minha esposa estava estudando e esperei que ela se formasse em Pedagogia. Eu e ela somos também da Rede de Pesquisadores Indígenas das Línguas Ancestrais da Unesco (ONU).

Já em 2021, fui convidado pela Valéria Macedo, uma amiga de longa data, para fazer parte da PARI-C – Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, e assim me tornei um pesquisador indígena do estado de São Paulo. Faço parte da pesquisa com entrevistas, reuniões com a equipe e com trabalho de transcrição e tradução da língua guarani para o português. Fizemos um estudo de caso sobre partos e nascimentos durante a pandemia e outro com o tema do distanciamento social.

Os próximos episódios desse filme da minha vida eu não sei, mas tenho certeza de que vão ser cheios de ação, de emoção e de lutas por nossos direitos e pela vida de todos nessa Terra.

Revisada e editorada por Daniela Perutti