Em encontros virtuais, crianças e adolescentes da Aldeia Piaçaguera, que protagonizaram o livro “Coronavírus é um bichinho que deixa doente”, comentaram o que mudou desde a elaboração da obra.
Capa do livro “Coronavírus é um bichinho que deixa doente”.
Há mais ou menos um ano, quando concederam depoimentos que compuseram a obra “Coronavírus é um bichinho que deixa doente”, as crianças e adolescentes da Aldeia Piaçaguera – uma das que integram a Terra Indígena Piaçaguera (Peruíbe-SP) e que estão representadas na obra – estavam assustadas e saudosas dos amigos e parentes, embora também demonstrassem esperança para o futuro.
Hoje, muitos desses sentimentos prosseguem – afinal, a pandemia ainda não acabou. Mas se combinam a certo alívio e alegria, já que eles veem a maior parte dos parentes vacinados contra a Covid-19 e podem se reencontrar, aos poucos, com os amigos na escola e na aldeia. Esse misto de cuidado e felicidade foi a marca dos dois encontros virtuais realizados, em 18 de outubro, entre a Comissão Pró-Índio de São Paulo e os jovens indígenas da aldeia e seus professores, para comentar a recepção do livro por eles e como as percepções ali expostas se transformaram nesse período de um ano.
Reunidas na escola da aldeia para o bate-papo, as crianças e adolescentes foram acompanhadas dos professores e professoras que coletaram os seus depoimentos na época da elaboração do livro. As turmas se dividiram para um encontro de manhã e outro à tarde, recebendo calorosamente a equipe da Pró-Índio que os “visitou”.
Orgulho de serem protagonistas da conversa
Algo repetido diversas vezes no encontro foi a alegria sentida pelas crianças por verem seus nomes junto das frases que disseram no ano passado, e também na seção “Quem fez este livro”.
“Esse livro trouxe alegria para eles, de ver o nome deles escrito. Eles entendiam isso como conversa só de adulto, que eles só ouviam. Mas com esse livro puderam falar também sobre o que sentiam”, comentou a vice-diretora da escola, Lilian Gomes, que foi acompanhada pelo professor Ed Carlos dos Santos: “Esse trabalho ajuda na conscientização e na expressão deles. Pois é a opinião deles que tá ali”, disse.
Além de leitoras, agora as crianças da TI Piaçaguera se veem como protagonistas de sua própria obra.
Foi com esse orgulho que as crianças leram, durante o bate-papo, os depoimentos por elas assinados no livro. Além de poder identificar, no mapa que integra o livro, a sua aldeia e as de outros parentes que vivem na Terra Indígena. “É uma coisa que vai ficar para sempre”, enfatizou Lilian Gomes.
Saudade dos parentes ainda é marca presente
Os jovens contaram com alegria que algo que os afligia na época da produção do livro, a saudade da escola e do convívio com os amigos, agora foi amenizado com a volta das aulas presenciais. Mas as marcas da pandemia ainda se fazem presentes entre eles: não só pela manutenção dos cuidados sanitários, como também pela saudade dos parentes que vivem em outras aldeias e municípios, e que eles ainda não puderam reencontrar.
E quando a pandemia acabar? A saudade dos parentes que moram longe ainda é sentida pelas crianças indígenas.
Na Terra Indígena, após o avanço da vacinação, a circulação foi parcialmente retomada nas aldeias, contaram os professores. Mas as visitas entre uma aldeia e outra, assim como a saída para outros municípios, ainda é restrita, e acontece apenas nos casos de maior necessidade. Por isso, muitos dos aguardados reencontros ainda não aconteceram.
Não é à toa que, na seção “E quando a pandemia acabar?” do livro, as respostas mais frequentes das crianças são a do reencontro e dos abraços que pretendem dar nos tios, avós, primos que moram longe. Essa talvez seja a parte que menos mudou em um ano: no encontro virtual recente, os pequenos foram unânimes em apontar essa vontade como a mais intensa para o futuro.
Professores: sensibilidade para cuidar de si e dos outros
São grandes a responsabilidade e os desafios dos professores e professoras indígenas durante a pandemia. Num primeiro momento, houve a necessidade de conscientizar as crianças sobre o que aquela nova doença significava. Depois, tentar manter o aprendizado dos alunos à distância, com o envio de materiais didáticos e atividades. E, com o reencontro presencial, acolheram as crianças que, apesar da demonstrada resiliência, estão fragilizadas pelas dificuldades do momento. E ainda cuidam para que os cuidados sanitários sejam mantidos.
“Foi difícil falar com as crianças sobre esse momento de isolamento. Falávamos de usar máscara, e eles falavam que machucava orelha, que sufocava. E também a distância, que é algo complicado, ficar longe dos amigos, primos, familiares… e eles ficam perguntando por quê, o que é esse vírus. Foi complicado para eles aceitar essas necessidades”, relata o professor Fábio Karay Djeguaka.
E tudo isso tendo que lidar também com as próprias apreensões – algo que foi comentado pela professora Márcia Alcântara, que dá aulas em Piaçaguera, mas mora na Terra Indígena Itaóca, em Mongaguá. “Quando chegou a pandemia, eu não estava aqui, porque a porteira ficava fechada e não íamos de uma aldeia para outra. E eu senti muita falta deles, porque tô aqui dando aula há 4 anos. Foi muito triste ficar longe das crianças, não conseguir ajudar. Às vezes o pessoal fazia algum vídeo e mandava, mas não é a mesma coisa”, recordou.
Nesse sentido, a própria produção do livro constituiu um importante elo entre alunos e professores, como contou o professor Ed Carlos. “Pegar os depoimentos foi uma forma de nós, professores, entendermos as preocupações deles, e traçar meios de continuar com a educação das crianças”, disse.
Vacina e confiança para vencer a Covid-19
O alívio trazido pelos reencontros presenciais não tira das crianças e dos professores a preocupação em seguir se cuidando. Mas agora eles sabem que têm uma aliada fundamental no combate a pandemia: a vacina contra a Covid-19, que já chegou para todos os indígenas maiores de 12 anos da Terra Indígena de Piaçaguera. Aqueles com mais de 60 anos também já estão recebendo a dose de reforço.
“Hoje tá um pouco mais tranquilo. Já voltamos, estamos imunizados, usamos todas as medidas de prevenção, e usamos sempre máscara. Mas para ir para cidade, a gente ainda tem mais receio, e só vamos quando é muito necessário mesmo.”, conta a professora Cunhã Tawdy Aparecida dos Santos.
E quem disse que os mais novos também não ensinam os mais velhos? Como relata o professor Ed Carlos, muitas vezes são as crianças que reforçam a necessidade dos cuidados sanitários: “As crianças passaram a se preocupar mais com os outros. Um passa álcool na mão do outro. A atenção que eles passaram a dar ao outro, isso foi muito interessante de ver. E o adulto passa a se preocupar mais quando vê a criança preocupada também.”
Relembre a obra “Coronavírus é um bichinho que deixa doente”
O livro “Coronavírus é um bichinho que deixa doente” reúne depoimentos de 38 crianças e adolescentes, com idades entre 4 e 15 anos, da Terra Indígena Piaçaguera, localizada no município de Peruíbe, litoral sul do Estado de São Paulo. Em breves relatos, as crianças compartilham suas percepções, seus temores e seus desejos para quando a pandemia acabar.
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