Fonte: Outras Palavras
Nas aldeias guarani de SP, pandemia diminuiu a renda — em especial dos artistas e artesãos. Com isolamento, solidariedade de ONGs foi crucial — e indígenas puderam cuidar melhor da saúde e se reaproximar dos saberes ancestrais.
Relato de Olívio Jekupé, da aldeia Krukutu (SP), povo Guarani, a Angela Pappiani
São Paulo, a maior cidade da América do Sul, foi fundada sobre uma aldeia indígena no planalto de Piratininga e testemunhou o aldeamento, a evangelização, a escravização e as muitas tentativas de domesticar, utilizar ou fazer desaparecer os corpos e almas dos povos originários que até então viviam nômades e livres por aqui. Hoje ainda vivem no perímetro da cidade cerca de 2000 Guarani Mbyá, nas Terras Indígenas Jaraguá, na região noroeste, e Tenondé Porã, no extremo sul do município. Além dos Guarani, São Paulo oculta milhares de outros indígenas de muitas etnias diferentes que se viram forçados ao exílio ou migraram em busca de estudo, atendimento de saúde, trabalho, direitos, condições de sobrevivência. Para todas essas pessoas, a pandemia de Covid-19 trouxe medo, contaminação em índices maiores que o da população em geral, perda do trabalho ou alternativas de geração de renda, morte e sofrimento. Alguns retornaram a suas aldeias de origem, em busca do isolamento junto a familiares, outros sobreviveram com a ajuda de campanhas e colaborações. O número de contaminação e mortes de pessoas indígenas em São Paulo ficou diluído nas estatísticas, mas a dor da perda, a grande ausência dos sábios que partiram ficarão como cicatrizes dessa relação desigual e desrespeitosa a que os governos e os grandes donos do poder submetem os povos originários. Mas a resistência é forte e poderosa, a Tradição supera os tempos e as modernidades conferindo identidade e estratégias de luta às novas gerações.
No artigo de hoje, trago depoimentos de um indígena do povo Guarani Mbyá da Terra Indígena Tenondé Porã: Olívio Jekupé, da aldeia Krukutu.
Olivio Jekupé é escritor reconhecido, com dezenas de livros publicados e um intenso trabalho cultural que envolve toda sua família. Ele é pai do jovem Jeguaka Mirim, o Kunumi MC, rap nativo que vem alcançando um público cada vez maior com sua arte no idioma Guarani. Olívio vive com sua família de escritores e artistas na aldeia Krukutu, dentro do modo de vida Guarani, e seu depoimento traz as dificuldades enfrentadas por conta da suspensão dos projetos e eventos culturais na cidade e a importância da vida na natureza, com o conhecimento tradicional preservado, a revolta pela perda de muitas lideranças e a solidariedade:
Olivio Jekupé
“A gente ouviu falar muito na televisão sobre a pandemia lá na Europa, mesmo a gente estando aqui na aldeia, ficamos preocupados, pensando: tomara que não chegue no Brasil. Mas não teve jeito, a danada da doença chegou e foi uma época ruim para nós indígenas porque em abril sempre tem a comemoração da semana indígena e é quando os indígenas no Brasil dão palestras, fazem vídeos. Junto com meu filho Jeguaka eu tinha várias programações agendadas, para o SESC, Senac, escolas, universidades e de repente a pandemia veio e atrapalhou tudo. Tudo foi cancelado. A escola aqui da aldeia foi fechada. A gente tem o CECI (Centro de Educação e Cultura Indígena) que trabalha com os pequenos e também fechou. O agendamento de visitas de turistas também fomos obrigados a cancelar. Com o isolamento, ficamos até felizes porque a gente mora na aldeia e tem uma vivência com a natureza, vai pro mato cortar lenha, vai pescar, anda no meio da trilha. E tem a questão do oxigênio: como a gente vive na Mata Atlântica, temos uma respiração boa e isso é muito importante porque quem pega a Covid tem problema de falta de ar. Diminuiu o trabalho mas a gente ficou sossegado, num espaço tranquilo. O problema sério foi a alimentação. Pensei: eu e meu filho não vamos dar palestra, as pessoas não vão poder ir para a cidade vender artesanato, então vamos passar dificuldade. Então, um mês depois começou uma ação da sociedade, algumas ONGs levando doação de alimentos no Krukutu e nas aldeias vizinhas. Isso deu mais tranquilidade, a gente ficou mais feliz com o apoio. Minha mulher é conhecedora de ervas medicinais e começou a preparar medicamentos para a gente tomar. Não tem a vacina, mas tem o remédio do mato porque os povos indígenas sempre tiveram esse conhecimento. Daqui da aldeia, pela televisão, a gente acompanha o que está acontecendo no Brasil e ficamos muito tristes porque começou a morrer muitos indígenas, inclusive muitas lideranças importantes. Fiquei muito triste com a morte do Paulinho Paiakan, uma das maiores lideranças indígenas do Brasil, um grande lutador. Na década de 90, quando eu era garoto, fiquei muito triste quando fizeram a sacanagem para sujar o nome dele, acabar com ele. E, de repente, mataram o Paulinho Paiakan de novo, pela Covid-19. Morreu uma grande liderança Guarani em Angra dos Reis, o Domingos, cacique de lá, e o professor que estava estudando com minha filha.
Os problemas que o coronavírus trouxe não é novidade, porque desde a chegada dos portugueses o presente que deram para nós foi a doença. Então a gente tem que aprender com as doenças. Essa não é a primeira vez nem a última que enfrentamos uma epidemia. E não pensem que quando chegar a vacina vai ser o fim do problema, porque na verdade virão outros vírus, outras doenças. A gente tem que ficar sempre preparado. É o que enfrentamos desde 1500. A doença é complicada, ela não vê cara, não vê coração, não vê se é rico, pobre, se é indígena, branco ou negro, ela pega todo mundo. As pessoas ficam preocupadas porque ninguém quer morrer. É um momento difícil para todo o planeta terra.”