Na data de hoje, o Quilombo Boa Vista celebra a conquista histórica

Manuel Edilson que, em 1995 era o presidente da associação da comunidade Boa Vista, exibe o título de propriedade. Foto: Lucia Andrade/Arquivo CPI-SP.
Hoje, completam-se 30 anos da primeira titulação de uma Terra Quilombola no Brasil. Em 20 de novembro de 1995, a comunidade Boa Vista, localizada em Oriximiná, no Pará, conquistou o título de propriedade coletiva de seu território. Foram sete anos de luta para que o direito reconhecido na Constituição Federal de 1988 fosse pela primeira vez efetivado.
A emissão do título é resultado da determinação e resistência dos(as) quilombolas que, organizados na Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO) souberam traçar e concretizar uma estratégia eficaz de pressão junto ao governo federal. Assim lembra Zuleide Viana, liderança da comunidade “foi uma luta muito grande que a gente teve com a ARQMO. A gente descobriu que na Constituição a gente tinha direito às nossas terras, e aí a gente correu atrás. Esses parceiros ajudaram a gente — as igrejas, a Comissão Pró-Índio de São Paulo e outros.”
Em 1992, a ARQMO decidiu dar início à autodemarcação das terras quilombolas, uma vez que, até aquela data, o governo federal não havia dado qualquer sinal de interesse e disposição em cumprir o dispositivo constitucional. O primeiro território escolhido foi o Boa Vista. A autodemarcação teve o efeito esperado, motivando o Incra em Santarém a abrir, em 1993, processo administrativo para a regularização da TQ Boa Vista.

Auto-demarcação. Foto: Lúcia Andrade
O acompanhamento deste processo, a fim de garantir o seu desenvolvimento adequado, exigiu da ARQMO e parceiros um grande investimento de tempo e recursos. A tramitação de cada etapa do processo dentro do Incra requereu a intervenção dos quilombolas, com a realização de audiências em Santarém, Belém e Brasília; a organização de campanhas de cartas junto a ONGs brasileiras e internacionais requerendo sua manifestação junto ao governo; a solicitação de apoio a parlamentares; e a divulgação junto à imprensa. Carlos Printes, conselheiro da ARQMO, lembra que um dos desafios foi convencer o governo que o título tinha que ser coletivo “tentaram ainda fazer individual, mas a própria comunidade falou que não porque a gente trabalhava coletivo, então se fizesse daquele jeito não ia dar certo para comunidade.”
Esta trajetória de luta resultou no Título de Reconhecimento de Domínio de Boa Vista assinado pelo presidente da República e pelo presidente do Incra, em 20 de novembro de 1995. Lúcia Andrade, coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio, destaca que “é um orgulho para nossa organização ter contribuído com essa vitória pioneira, uma das diversas realizações da nossa longa parceria com os quilombolas de Oriximiná iniciada em 1989”.

Lições de Boa Vista
Carlos Printes destaca o impacto da regularização de Boa Vista para o movimento quilombola “a primeira titulação de terras quilombolas no Brasil abriu espaço para a gente titular outros territórios”. Avaliação que é reforçada por Daniel de Souza, um dos primeiros coordenadores da ARQMO, “recebemos o primeiro título em 1995 festejamos o tricentenário de Zumbi. O segundo foi em 1996 e o terceiro em 1997 – a área era muito maior. Foi uma estratégia política nossa começar pelo menos complexo. Experiência piloto. A gente ia convencendo aos poucos o governo”.
Segundo Lúcia Andrade, a primeira titulação pelo governo federal firmou, ao menos, dois importantes precedentes jurídicos “consolidou a interpretação de que o artigo 68 do ADCT é autoaplicável, não dependendo de regulamentação para a sua efetivação, questão que era controversa naquela época. Além disso, firmou o entendimento que a titulação das terras quilombolas deve ser coletiva, instituindo uma modalidade singular de propriedade no ordenamento jurídico brasileiro, uma propriedade coletiva que não pode ser vendida, arrendada ou loteada”.
Os resultados obtidos em Oriximiná repercutiram também junto aos quilombolas de outras regiões que se sentiram motivados a buscar seus direitos. Assim lembra Daniel Souza “nós éramos chamados para tudo quanto é canto, em São Paulo, Brasília. Tinha reunião sempre. Fui ao Maranhão, Pernambuco, Rio de Janeiro, vários lugares do Brasil onde tem quilombo. Fui para contar a experiência da titulação”.

Quilombo Boa Vista. Foto: Carlos Penteado/Arquivo CPI-SP.
A Luta Continua
A luta pela titulação das Terras Quilombolas segue. Se em Oriximiná, a grande parte dos territórios já se encontra regularizada, essa não é a realidade brasileira. O Observatório Terras Quilombolas da Comissão Pró-Índio de São Paulo indicava que, em agosto de 2025, 1.928 Terras Quilombolas aguardavam pela conclusão do procedimento para regularização no Incra. Até essa data, em todo o Brasil, somente 186 Terras Quilombolas encontravam-se tituladas e 85 TQs estavam parcialmente regularizadas.
Titular as Terras Quilombolas, além de um dever constitucional, é essencial para reparar a enorme injustiça histórica contra o povo negro no Brasil.