Após muitas lutas para conseguir o título de seus territórios, duas associações de comunidades quilombolas de Oriximiná e Abaetetuba, no Pará, estão sendo cobradas na Justiça para pagar o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR). Os valores somam mais de R$ 13 milhões, montante impagável para as famílias quilombolas que sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês.

Para apoiar as comunidades, a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP), que atua com os quilombolas da região desde 1989, está buscando assegurar que as associações tenham condições de ter acesso à uma defesa justa. “Por isso a iniciativa de buscar um escritório para a defesa pro bono das associações”, conta Lúcia Andrade, coordenadora-executiva da CPI-SP.

A organização também está trabalhando para que seja revisto o entendimento da Receita Federal de que as terras quilombolas estão sujeitas à tributação do ITR. “Ao nosso ver, não tem sentido tributar as terras quilombolas porque são áreas coletivas que não podem ser vendidas, loteadas ou arrendadas”, lembra Lúcia. As  terras quilombolas são uma categoria de áreas protegidas e referidas no Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas do governo federal.

De acordo com o advogado Luiz Gustavo Bichara, que está cuidando do caso sem custo nenhum às comunidades, a cobrança da Receita Federal não leva em conta fatores social e ambiental. “A União reconhece a dívida histórica que tem com essas comunidades e a Constituição determina que estas famílias tenham a posse de seus territórios. E a mesma União faz uma cobrança milionária para estas famílias. Não faz sentido”, pontua Luiz. O advogado lembrou também que as áreas onde vivem os quilombolas são locais com a floresta preservada. “O governo prevê isenção do imposto em áreas de preservação também”, disse. “Estamos muito confiantes que conseguiremos reverter esta situação”, acrescenta Luiz.

Edilson da Conceição Côrrea Cardoso da Costa, 55 anos, coordenador da Associação das Comunidades Quilombolas da Ilha de Abaetetuba (Arquia), conta que as esperanças foram renovadas após as articulações da CPI-SP. “Isso aqui para nós é um caminho que está abrindo as portas para resolver esse problema. Hoje a gente tem certeza que o problema vai ser resolvido e até ontem a gente não tinha”, conta o quilombola que nasceu e foi criado na Comunidade Arapapuzinho, em Abaetetuba (PA). De acordo com Edilson, as nove comunidades que fazem parte da Arquia tiveram a esperança renovada com a possibilidade de suspender a dívida. “Nós precisamos conseguir financiamentos, principalmente de habitação, que é uma das nossas maiores dificuldades, ter moradia”, relata.

Na análise de Celso Albuquerque, procurador da República que atua no Rio de Janeiro, a cobrança é inconstitucional porque o valor inviabiliza a sobrevivência dessas comunidades. Celso irá encaminhar um parecer sobre a cobrança do ITR as comunidades quilombolas para a 6a Câmara do Ministério Público Federal para subsidiará a defesa dos interesses dessas comunidades por parte do órgão. “Esse imposto não pode ser cobrado para essas comunidades, existe uma imunidade constitucional com relação as terras quilombolas”, explica o procurador da República.

Histórico
Desde o fim do ano de 1980, as comunidades de Abaetetuba (PA) lutam pela titulação da terra. A conquista veio em 2002 por meio do Instituto de Terra do Pará (Iterpa), que concedeu a titulação de propriedade coletiva. Contudo, em 2006, a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos das Ilhas Abaetetuba (Arquia) – representante de nove comunidades – recebeu a cobrança de R$ 3,7 milhões em Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR). O valor é impossível de ser pago pelas famílias, que recebem menos de um salário mínimo por mês. Em setembro, a Justiça estipulou o valor da dívida em mais de R$ 11 milhões. Atualmente a Arquia consta como inadimplente, o que impossibilita acesso à créditos para a produção de mandioca e açaí, principal atividade de geração de renda das famílias. No caso da associação das sete comunidades quilombolas da Terra Quilombola Trombetas (Oriximiná), que passa pela mesma situação, a dívida gira em torno de R$ 2 milhões.

O ITR, criado inicialmente com o objetivo de taxar grandes latifundios improdutivos, incide sob as terras quilombolas, diferentemente do que ocorre com as Terras Indígenas, que são da União com usufruto exclusivo dos índios, e com assentamentos originários da reforma agrária, que são titulados lotes por família e ficam isentos da cobrança. A interpretação da Receita Federal que indica a cobrança do imposto as comunidades remanescentes de quilombos consta em um manual sobre ITR.

A cobrança do imposto aos remanescentes de quilombolas, na visão de Ana Luiza Cernov Rocha, Oficial de Programas da Christian Aid,  serve para manter as desigualdades que são estruturais na sociedade brasileira. “Isto é muito visível na questão quilombola porque em 23 anos de existência da legislação que garante a essas comunidades o direito à terra, ainda não se foi pensado um mecanismo para que tenham seu direito plenamente reconhecido sem a ameaça das cobranças de ITR. Assim sendo, estamos certos de que este caso trará luz a essa situação na qual o Estado não garante a posse à terra que ele mesmo titula e abrirá portas para se buscarem alternativas para que essas comunidades tenham acesso pleno a seus direitos.

A Christian Aid, apoiadora da CPI-SP nesta ação, mantém a Campanha por Justiça Tributária para promover maior transparência no sistema financeiro e garantir que as estruturas fiscais deixem de ser mecanismos de reprodução da pobreza e da desigualdade, como no caso das comunidades quilombolas do Pará.