Fonte: Folha de São Paulo

Apenas 165 terras quilombolas, ou 9,7%, receberam título de posse até este domingo (20), Dia da Consciência Negra, enquanto outras 1.525 estão em processo de regularização no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Em 2016, só uma única área do tipo foi titulada.

As informações são de levantamento da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP), organização que acompanha questões indígenas e outras populações tradicionais, e foram posteriormente confirmadas pela Folha.

Comunidades quilombolas são, em geral, aquelas que mantêm algum vínculo com a cultura de negros que fugiram da escravidão e estabeleceram um modo de vida rural, com agricultura e extrativismo animal e vegetal para subsistência. A titulação é o que permite, para as comunidades, o direito de posse das áreas em que estão. “O documento é importante para se manter no local, para preservar a sua cultura”, diz José Carlos Galiza, da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq).

Para o Incra e especialistas, o tema é delicado. Envolve, de um lado, grupos que ocupam áreas há centenas de anos, embora não tenham documento que garanta posse; e, de outro, posseiros, grileiros, madeireiros e produtores rurais que pressionam pelo direito de posse dessas mesmas áreas.

A disputa pela propriedade dos territórios quilombolas, mesmo aquelas já titulados, é o principal motivo que “trava” os processos de titulação, na avaliação dos especialistas. “Há essa dificuldade que o processo chegue a um nível de entendimento entre todas as partes”, explica Rogério Arantes, diretor de ordenamento e estrutura fundiária do Incra.

Para a antropóloga Lúcia Andrade, coordenadora da CPI-SP, no entando, falta mediação dos conflitos pelas terras e suportes às comunidades instaladas. “Na hora em que há, você nunca vê um governo que quer assumir esse passivo de disputas.”

Outra hipótese sobre a demora tem a ver com o excesso de terras certificadas -na primeira fase do processo de titulação, a Fundação Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, emite um documento reconhecendo a existência da comunidade quilombola, mas que não garante a posse da terra.

Esse é o ponto de vista do presidente da órgão, Erivaldo Oliveira. Segundo ele, nos processos emperrados, há comunidades que foram certificadas mesmo ocupando reservas ambientais ou até a propriedade de outras pessoas. “Quando eu certifico de qualquer forma, isso gera problemas jurídicos lá na outra ponta.”

O reconhecimento jurídico tardio da existência das comunidades quilombolas também contribui para o atraso. A primeira vez que elas obtiveram tal caráter foi na Constituição de 1988, ainda que muitas existissem antes da promulgação da Lei Áurea, cem anos antes, em 13 de maio de 1888 – que aboliu a escravatura.

“O Estado brasileiro tentou sumir com o passado escravocrata, como se, ao acabar a escravidão, não existissem mais quilombos”, afirma a coordenadora da Comissão Pró-Índio.

COBRANÇA

Comunidades cobram mais velocidade do governo federal sobre o tema, por ter controle do Incra e de outros órgãos envolvidos nas titulações. “A gente não consegue avançar por conta da falta de recurso, da vontade política e do excesso de burocracia”, diz o quilombola Galiza.

Das 165 terras tituladas, apenas 36 tiveram posse concedida pelo governo federal -outras receberam dos governos estaduais, que também têm a prerrogativa. A quantidade não varia muito entre os últimos presidentes da República, desde 1988.

Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) titulou oito áreas, Lula (2003-2010), 12, e Dilma Rousseff (2011-2016) 16. Até agora, no governo Temer (PMDB), uma terra do tipo foi titulada. Sarney (1985-90) e Collor (1991-1992) não emitiram títulos.

Questionado, o Incra afirma que pretende titular pelo menos cinco áreas até o final do ano. Uma delas é a terra Tabacaria, em Alagoas, que recebeu o título neste domingo por ocasião do 20 de novembro. De acordo com Arantes, diretor do Incra, o governo federal orientou que as titulações não parem “de forma alguma”.

Se, entretanto, titular o mesmo número de terras por ano até o fim do mandato, a gestão Temer terá resultado não muito diferente de seus antecessores. Seriam 15, ao todo.

Há cerca de 3.000 comunidades quilombolas em todo território nacional, segundo o Incra -em certos casos, mais de uma comunidade ocupa a mesma área- ou 197.950 famílias que ainda aguardam a titulação de suas terras.

Sem a titulação, quem vive nas comunidades não pode contrair empréstimos bancários, como créditos para financiar a agricultura, regularizar atividades como turismo ou comércio ou recorrer à polícia e à Justiça nos em casos de invasão das terras. “O território é o suporte da cultura, da vida daquele grupo”, diz Andrade.

A Folha mostrou, em setembro, as dificuldades que comunidades quilombolas, assim como indígenas, encontravam para manter seus modos de vidas tradicionais em Ubatuba (no litoral de São Paulo). Eles recorriam ao turismo para gerar renda e sobreviver.

No ano passado, o jornal revelou que moradores de quilombos no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, também usavam do turismo para frear o êxodo de homens que estavam deixando o local para procurar emprego nas áreas urbanas.

COMO É A TITULAÇÃO DE UMA ÁREA QUILOMBOLA

1. Autodefinição: A comunidade recebe um certificado de autorreconhecimento emitido pela Fundação Palmares (ligada ao Ministério da Cultura) e então pleiteia junto ao Incra a titulação do seu território

2. Relatório Técnico de Identificação e Determinação: especialistas do setor público e privado realizam estudos geográficos e culturais para determinar a área ocupada pelo território e o apresentam ao Incra

3. Publicação do relatório: o resultado do relatório é apresentando, e as partes interessadas no território que será titulado, como posseiros e quilombolas, têm, em até 90 dias, o direito de contestar as conclusões do documento, apresentando recurso no Incra

4. Diário Oficial: o presidente do Incra publica um decreto no Diário Oficial da União, acolhendo o relatório publicado e reconhecendo os limites da área do território

5. Desapropriação: quando a terra que será titulada já é ocupada por outras pessoas, o presidente da República assina um decreto de desapropriação da área por interesse social. Antigos proprietários recebem indenização

6. Titulação: O presidente do Incra emite o título coletivo de posse da área, que é registrada no nome da associação de moradores da comunidade quilombola. A venda ou penhora da área são proibidas.