Fonte: Nexo

Na última semana, a comunidade de Cachoeira Porteira, em Oriximiná, no Pará, e suas cerca de 145 famílias remanescentes de quilombos, conquistaram o direito a um território de 225 mil hectares. Com o aceno do governo paraense no sábado (3), a população de mais de 500 pessoas se tornou proprietária de uma das maiores áreas quilombolas do país, após duas décadas de reivindicação.

Oriximiná está localizada no extremo oeste do estado, quase na fronteira com Amazonas, e a mais de 800 km da capital, Belém. A região é historicamente formada por comunidades tradicionais indígenas e quilombolas, muitas localizadas às margens do Rio Trombetas. Cachoeira Porteira é uma delas.

De acordo com a Comissão Pró-Índio de São Paulo, organização civil que acompanha de perto essas comunidades no Pará, a população quilombola chega a totalizar quase 10 mil pessoas, distribuídas em 37 comunidades na região e ali presentes desde, pelo menos, o século 19.

Muito antes de Cachoeira Porteira, outras quatro comunidades na cidade de Oriximiná já haviam recebido título de propriedade da terra, entre 1995 e 1998: Erepecuru, Trombetas, Água Fria e Boa Vista, sendo essa última a primeira a ser regularizada como território quilombola no país. Outras três ainda aguardam regularização.

Com a titulação dada a Cachoeira Porteira, cuja população vive da extração de castanha-do-pará, agricultura familiar e pesca, o estado do Pará reforça posição como o que mais titula territórios do tipo no país.

Histórico de Lutas

A região paraense tem um histórico conhecido também na política em Brasília. De acordo com a coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo, Lúcia Andrade, membros dos quilombolas de Oriximiná foram os primeiros a viajar para a capital federal visando a titulação prevista ineditamente pela Constituição Federal de 1988.
“Os quilombolas conseguiram mobilizar uma série de parceiros que apoiaram a luta até a primeira titulação. Apesar das conquistas, a luta prossegue, já que três territórios ainda aguardam pela titulação, sendo que dois deles (Alto Trombetas 1 e 2) estão ameaçados pela expansão da mineração de bauxita”, apontou ao Nexo a antropóloga organizadora do livro “Entre Águas Mansas e Bravas – Índios e Quilombolas em Oriximiná” (2015).

“Os quilombolas conseguiram mobilizar uma série de parceiros que apoiaram a luta até a primeira titulação. Apesar das conquistas, a luta prossegue, já que três territórios ainda aguardam titulação, sendo que dois deles (Alto Trombetas 1 e 2) estão ameaçados pela expansão da mineração de bauxita”, aponta ao Nexo a antropóloga organizadora do livro “Entre Águas Mansas e Bravas – Índios e Quilombolas em Oriximiná” (2015).

Também em entrevista ao Nexo, José Carlos Galiza, representante paraense da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) relembra o papel de articulação desempenhado por algumas lideranças quilombolas na época e seus efeitos.

“Eles visitaram as comunidades próximas e até de outros estados divulgando e tirando dúvidas sobre as conquistas de 1988”, diz. “Por aqui tem muita disputa de terra, na época era ainda pior. Sem o título, a gente era posseiro, tínhamos direito à terra pelo tempo que estamos aqui, mas sem um documento que desse segurança jurídica”, explica.

O processo de regularização
Em 1988, a Constituição Federal tornou uma obrigação do Estado garantir aos “remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras” o direito definitivo à propriedade das mesmas. Em 2003, um decreto (nº 4.887/2003) regulamentou a questão, determinando que a decisão sobre se a terra é de fato um remanescente de quilombo ou não ao princípio de autodefinição.

Para obter a regularização, a comunidade quilombola deve obter um certificado de autorreconhecimento pela Fundação Cultural Palmares, uma entidade ligada ao Ministério da Cultura, e então fazer o pedido pelo título da terra ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Feita a titulação, a comunidade fica impedida de vender ou arrendar a terra.

De acordo com Lúcia Andrade, da Comissão Pró-Índio, a titulação “representa uma garantia de que a comunidade poderá continuar vivendo em seu território”, diz. “Ela facilita o acesso a políticas públicas e dá mais condições para que os quilombolas planejem o seu futuro buscando superar a situação de desigualdade social e econômica que vivenciam”.

Altos e baixos
Desde a primeira regularização em 1995, as titulações de terras quilombolas passam por períodos de altos e baixos. Embora o Incra tenha mais de 1.500 pedidos do tipo (dados de junho de 2016), apenas 171 terras (que por vezes agrupam diferentes áreas e comunidades) foram de fato tituladas até hoje, de acordo com levantamento da Comissão Pró-Índio.

Nos últimos anos, no entanto, as regularizações acumulam quedas. Entre os fatores que pesaram contra as titulações está uma ação movida ainda em 2004 pelo antigo PFL (atual DEM) acusando de inconstitucionalidade o decreto que regulamentava o tema. O princípio de autodefinição era um dos alvos.

A ação começou a ser votada em 2012 pelo STF (Supremo Tribunal Federal), processo que se concluiu apenas em fevereiro de 2018, com a maioria votando pela rejeição da ação e em defesa do decreto. Em 2017, porém, sob o argumento de que se devia “aguardar o desfecho do julgamento”, o governo Michel Temer optou pela suspensão das demarcações de terras quilombolas.

Retomada?
A recente decisão do STF seguida da entrega da terra à comunidade de Cachoeira Porteira dá nova esperança aos demais quilombolas de que as novas regularizações passem a acontecer mais rapidamente.

“É a nossa vontade, a de que as titulações aconteçam mais rapidamente. Mas, apesar da vitória no Supremo, a gente também entende que a titulação não se resume a um problema legal, mas o que falta muitas vezes é mesmo vontade política”, diz o coordenador do Conaq no Pará, José Carlos Galiza. “Tem comunidades que poderiam já estar tituladas, e não estão. No caso das que estão sob jurisdição federal, a história é ainda mais complicada. A verdade é que o movimento [quilombola] ainda tem muitas lutas pela frente”, afirma.

Para Lúcia Andrade, da Comissão Pró-Índio, a decisão no STF “amplia a segurança jurídica para condução dos processos de regularização”, mas diz que isso não faz a titulação de terras uma realidade mais próxima da maioria das comunidades quilombolas. “O corte orçamentário representa um dos principais empecilhos para que o Incra consiga imprimir a necessária celeridade ao andamento dos 1.673 processos abertos”, diz a pesquisadora, que ainda aponta que cerca de 84% desses processos não conta com o relatório de identificação do território, o chamado RTID, documento técnico básico para a regularização.

“Sem recursos, o Incra não conseguirá reverter o cenário atual onde apenas 9% das comunidades quilombolas no Brasil conta com sua terra titulada”, diz Andrade. Sem o título, a especialista afirma, “as comunidades quilombolas ficam mais vulneráveis nas disputas envolvendo seus territórios colocando-as numa situação de insegurança”.