Em carta pública, os participantes do seminário “Terras Quilombolas e Unidades de Conservação” demandam conclusão dos processos de titulação, acesso às políticas públicas e o fim das ações repressivas do ICMBio

 

Foto: arquivo CPI-SP

Durante três dias, de 26 a 28 de outubro, lideranças quilombolas do Amazonas, Amapá, Pará e Rondônia compartilharam as dificuldades que enfrentam por viverem em territórios sobrepostos a unidades de conservação. “Às vezes a gente pensa que só a gente passa por essas dificuldades, mas com esse evento a gente vê que não”, disse Aluízio do Quilombo Tapagem e coordenador da Associação Mãe Domingas, em Oriximiná (Pará).

O seminário, promovido pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, debateu os casos das Terras Quilombolas Tambor (sobreposta ao Parque Nacional do Jaú, no Amazonas) Santo Antônio do Guaporé (sobreposta a Reserva Biológica do Guaporé em Rondônia) Cunani (sobreposta ao Parque Nacional do Cabo Orange no Amapá) e Alto Trombetas e Alto Trombetas 2 (onde vivem 13 comunidades sobrepostas com a Rebio do Rio Trombetas e a Floresta Nacional Saracá-Taquera, no Pará) com a participação de lideranças dessas comunidades, representantes da Comissão Pastoral da Terra de Rondônia, Amapá e Óbidos (Pará), do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Estado do Pará.

Afonso Maria das Chagas, assessor jurídico da CPT Rondônia, avalia que a importância do evento é promover a formação e o acesso à informação “É um caminho de mão dupla, a comunidade se informa e a comunidade informa”. E acrescenta “Eu acredito que por mais que as realidades tenham características individuais, identificamos pontos em comum, o comportamento dos órgãos estatais federais que impõem obstáculos”.

A procuradora da República do Ministério Público Federal do Pará, Fabiana Schneider, também destacou a importância do seminário na busca de iniciativas articuladas. “Iniciativa válida e produtiva, oportunidade que temos para ter contato com várias experiências de outros lugares. Muitos desses problemas são parecidos e isso nos leva a canalizar esforços para buscar soluções conjuntamente”.

“O que vimos no seminário é que os problemas vividos pelos quilombolas são muito semelhantes nos quatro casos: cerceamento do direito de ir e vir; restrições à reprodução de seu modo de vida com implicações diretas nas possibilidades de assegurar sua subsistência; dificuldade de acesso às políticas públicas; falta de um real diálogo com o ICMBio; e relatos de situações de intimidação e, até mesmo de violência, por parte dos agentes estatais. E, em todos os casos, os processos de titulação seguem paralisados” resumiu Lúcia Andrade, coordenadora da Comissão Pró-Índio de São Paulo.

Processos de Titulação Interrompidos

“Partimos do princípio que os povos e comunidades tradicionais têm o direito de estar onde estão” afirmou Maria Luiza Grabner procuradora da República e coordenadora do GT Quilombo da 6ª Câmara do Ministério Público Federal aos participantes do seminário.  De acordo com a procuradora, a sobreposição com Unidades de Conservação não impede o Incra de continuar com os procedimentos de titulação. “Não é necessário aguardar definição da AGU para continuar com o processo de titulação, esse é o entendimento da 6ª Câmara do MPF” explicou.

Apesar disso, porém, os processos de titulação dessas terras quilombolas encontram-se paralisados na Câmara de Conciliação da Advocacia Geral da União desde 2007 sem que ICMBio e Incra encontrem uma solução para assegurar aos quilombolas à titulação de suas terras.

“Não parece existir uma real disposição do governo em viabilizar a titulação dessas terras. Mesmo no único caso onde já houve um acordo que implicou em redução significativa do território quilombola Santo Antônio do Guaporé, no ano de 2011, o Ministério do Meio Ambiente, até hoje, não deu andamento ao processo” avalia Lúcia Andrade, coordenadora da Comissão Pró-Índio de São Paulo.

Outro ponto de preocupação destacado pelos participantes foi a falta de participação das comunidades nas negociações na Câmara de Conciliação. É a situação relatada por Sebastião Ferreira de Almeida, liderança do quilombo Tambor “Infelizmente a gente nunca foi chamado para conversar, participar de reunião. A gente estranha isso, se tem alguém para decidir sobre nós, somos nós mesmos”.

Essa realidade tem motivado o Ministério Público Federal a exigir na Justiça a titulação dessas terras quilombolas e a participação dos quilombolas nas negociações. Em 2015, duas decisões judiciais atenderam aos pedidos do MPF. Em fevereiro, a Justiça Federal em Santarém (PA) determinou que a União, o Incra e ICMBio concluam no prazo de dois anos a titulação das terras quilombolas do Alto Trombetas em Oriximiná. E no mês de maio, a Justiça Federal do Oiapoque (AP) concedeu liminar determinando que Incra e ICMBio promovam a participação dos quilombolas de Cunani nos procedimentos de resolução do conflito de sobreposição e se abstenham de adotar qualquer medida que importe em diminuição do território quilombola ou em sua remoção/realocação.

Foto: arquivo CPI-SP

Riscos de remoção e redução dos territórios
Somente em um dos casos, o processo conciliatório resultou em acordo entre Incra e ICMBio, o da Comunidade Santo Antônio do Guaporé sobreposta a Reserva Biológica do Guaporé. A conciliação acertada em 2011 implicou em redução significativa do território quilombola que havia sido identificado pelo Incra com 41.600 hectares. No acordo se prevê a desafetação de apenas 7.221,4200 hectares da Rebio Guaporé para titulação como terra quilombola.

“Nós só aceitamos essa diminuição porque estamos cansados, foi o único meio de chegar em um acordo. Não ficamos satisfeitos, mas foi um meio de chegar em um acordo para sair da briga”, desabafou Juracy Nogueira de Menezes, liderança quilombola de Santo Antônio.

E nem mesmo esse único acordo foi efetivado já que, até hoje o ICMBio e Ministério do Meio Ambiente não cumpriram o compromisso de apresentar proposição legislativa para viabilizar a mudança de limites da Rebio. Nem tampouco foi elaborado o plano de uso do território quilombola pelo ICMBio, Incra e Fundação Palmares conforme constava do acordo.

Já a Comunidade Tambor está ameaçada de remoção de seu território uma vez que, em março de 2014, o ICMBio apresentou na Câmara de Conciliação proposta de relocação das famílias que foi aceita pelo Incra com a condição de que a comunidade fosse consultada. Mas tal proposta é rechaçada pelos quilombolas “Tudo que a gente conquistou que a gente preservou está ali na comunidade, eu jamais vou sair com meus companheiros e ir para um lugar – é como se fosse nos Estados Unidos, é a minha posição, da minha comunidade” afirma Sebastião Ferreira de Almeida, liderança do quilombo Tambor.

Cotidiano de Restrição de Direitos 
As restrições para a realização das atividades de subsistência foram reiteradamente mencionadas pelos quilombolas. “Eles tiram nosso costume, isso me preocupa muito. Para fazer a roça tem que pedir autorização no ICMBio. A mineração já desmatou lá e isso nem aparece. Estamos há 20 anos lutando para titular um pedaço de terra, mas para dar licença para a mineração tirar bauxita já está autorizado”, explica Aluízio referindo-se à empresa Mineração Rio do Norte que extrai bauxita no interior da Floresta Nacional Saracá-Taquera.

“Antes de ter o parque a gente era feliz, não vivia sobre imposições e não vivia limitada. Muitos deixaram a comunidade depois do parque. Para reformar uma casa é uma batalha, às vezes eles nem deixam, mas a gente faz porque precisa” relata Rosimeire Ramos Macedo do Quilombo Cunani que está parcialmente sobreposto ao Parque do Cabo Orange, no norte do Amapá.

No Amazonas, os quilombolas de Tambor – sobreposto ao Parque Jaú – vivenciam dificuldades semelhantes. Segundo Isane Santos moradora da comunidade “Hoje não podemos plantar porque não pode desmatar. É nosso meio de sobrevivência, tinha que ter respaldo. Tiramos a sobrevivência e a gente preserva”.

Isane denunciou os casos de abuso de autoridade e violência “os agentes de meio ambiente estão preparados para defender o animal, mas não o ser humano”. Situações de violência e abuso de autoridade foram relatados pelos quilombolas de Tambor, Santo Antônio e Oriximiná.

O acesso às políticas públicas também é um desafio para as comunidades que vivem em sobreposição às áreas de conservação. “É viver limitado, o desenvolvimento não chega na comunidade, temos muitas dificuldades para os projetos chegarem. O ‘Luz para Todos’ não temos por conta do ICMBio” exemplifica Rosimeire do Quilombo Cunani.

Os quilombolas relataram dificuldades para garantir direitos básicos como a construção de escolas e implantação do saneamento básico. Em Oriximiná, o ICMBio proíbe emissão da DAP-Declaração de Aptidão ao Pronaf para os quilombolas que vivem na Rebio do Rio Trombetas, declaração que é utilizada como instrumento de identificação do agricultor familiar para acessar diferentes políticas públicas de inclusão produtiva.

Por essa razão na Carta do Seminário os participantes requereram ao governo federal que implemente e não impeça a implementação de políticas públicas nessas comunidades.

Foto: arquivo CPI-SP

Seminário Terras Quilombolas e Unidades de Conservação
Alter do Chão, 26 a 28 de outubro de 2015
Promoção: Comissão Pró-Índio de São Paulo
Apoio financeiro; Christian Aid, ICCO e Fastenopfer

Entrevistas e texto: Bianca Pyl
Edição: Lúcia Andrade