Organizações lançam nota de repúdio a criação, pelo Ministério da Justiça, de Grupo de Trabalho para formular propostas que visam a “organização social” de indígenas e quilombolas
Um conjunto organizações e articulações indígenas, indigenistas e quilombolas, entre elas a Comissão Pró-Índio de São Paulo, divulgou nota de repúdio às Portarias 541/2017 e 546/2017 do Ministério da Justiça, que articulam ações de “integração social” e “organização social” de indígenas e quilombolas.
As organizações e articulações que assinam a nota de repúdio avaliam que as duas portarias sinalizam para políticas indigenistas de caráter integracionista, intervencionista e autoritário, a exemplo daquelas desenvolvidas pela Ditadura Militar. “Preocupadas com o processo de militarização e enfraquecimento da Funai, e com os contínuos ataques aos direitos indígenas, as organizações abaixo assinadas repudiam publicamente a criação do referido GT e exigem sua imediata revogação”, diz um trecho da nota (íntegra abaixo).
A primeira portaria, publicada na semana passada, criava um grupo de trabalho para formular propostas que visariam à “integração social” de indígenas e quilombolas. O grupo seria formado por um representante da Fundação Nacional do Índio e todos os outros servidores de órgãos da Segurança Pública, como a Polícia Federal. A Portaria 546 apenas substituiu a expressão “integração social” por “organização social”, além de trocar um dos integrantes do grupo de trabalho.
Confira a nota na íntegra
De volta ao integracionismo?
Nos últimos anos a sociedade tem assistido a uma acelerada escalada de violência contra os povos indígenas no Brasil, diretamente relacionada a uma série de iniciativas no âmbito dos poderes legislativo, executivo e judiciário que visam à desconstrução dos direitos assegurados na Constituição Federal de 1988. Trata-se, sem dúvida, do contexto mais adverso enfrentado por estes povos desde o processo de redemocratização do país e a consagração do direito originário dos povos indígenas sobre seus territórios, bem como à sua organização social, costumes, línguas e tradições – gravemente ameaçados nos dias de hoje.
Se a incompatibilidade entre a Constituição Federal de 1988 e medidas como a PEC 215 e a Portaria 303 da Advocacia Geral da União (para citar duas dentre as dezenas de iniciativas anti-indígenas que têm se proliferado em anos recentes) já era flagrante, dois atos do Poder Executivo relacionados aos povos indígenas e quilombolas nos últimos dias parecem ter sido extraídos diretamente do Diário Oficial da União de décadas atrás, próprios do regime de exceção da ditadura militar no Brasil.
A criação, em 6 de julho último, de um Grupo de Trabalho “com a finalidade de formular propostas, medidas e estratégias que visem à integração social das comunidades indígenas e quilombolas” guarda notável semelhança com os ideais integracionistas da doutrina de segurança nacional. A simples criação do GT nestes termos já seria assustadora, por remeter à perigosa associação com paradigmas aculturativos, há muito tempo abandonados pela antropologia e pelo indigenismo oficial, e em total desacordo com os princípios instituídos pela Constituição de 1988.
Em função de fortes críticas dos movimentos indígenas e indigenistas e de imediata manifestação do Ministério Público Federal, a referida portaria foi reeditada em 13/07/17 simplesmente substituindo o termo “integração social” por “organização social”. Ou seja, a emenda ficou ainda pior que o soneto, pois formular propostas para a organização social de povos indígenas e quilombolas continua mantendo uma clara perspectiva intervencionista e etnocêntrica do Estado sobre essas populações, que não consegue esconder as reais intenções e objetivos do GT. E todas as objeções colocadas pelo documento do MPF continuam sem resposta na “nova” portaria.
Reforça ainda mais essa iniciativa totalmente inconveniente e inconsequente o fato do GT ser composto quase exclusivamente por membros de órgãos de segurança e desprovido da presença de qualquer instituição que atua com as comunidades quilombolas, embora estas sejam também objeto do Grupo de Trabalho.O prazo exíguo para a elaboração e apresentação do plano de trabalho (15 dias) e do relatório do GT (30 dias após aprovação do plano de trabalho) também demonstra claramente que não se prevê nenhum tipo de consulta aos povos e comunidades afetados pelas “propostas, medidas e estratégias” advindas do GT, em flagrante desrespeito à Convenção 169 da OIT.
O segundo ato, publicado seis dias após a criação deste GT, foi a efetivação do general Franklinberg Ribeiro de Freitas na presidência da Fundação Nacional do Índio, cargo que vinha ocupando interinamente desde 9 de maio de 2017, apesar de inúmeros protestos por parte dos povos e organizações indígenas. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Em entrevista coletiva por ocasião de sua exoneração, o antecessor do general, Antônio Fernandes Toninho Costa, afirmou que o órgão vive “uma ditadura que não permite o presidente da Funai executar as políticas constitucionais”. Paradoxalmente, o pastor evangélico Toninho Costa havia sido indicado pelo mesmo Partido Social Cristão (PSC) do general Franklinberg. As graves denúncias feitas por ele escancaram a utilização da Funai como moeda de troca pelo governo Temer e a subordinação da política indigenista aos interesses da bancada ruralista no Congresso Nacional. O Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), criado em 2015 e instalado em abril de 2016, fez apenas duas reuniões e não houve mais nenhuma iniciativa do MJ em convocar novas reuniões do Conselho, num flagrante desrespeito às organizações indígenas. Também é digno de nota o fato do governo federal não ter feito nenhum movimento até o momento para implementar as resoluções aprovadas durante a Conferência Nacional de Política Indigenista, por ele mesmo convocada em 2015.
O discurso da integração e da assimilação da ditadura militar serviu para legitimar, nos campos jurídico e teórico, a usurpação das terras indígenas sob o pretexto da perda da identidade desses povos. Vale ainda lembrar que foi justamente esse discurso integracionista que justificou a ideia de “emancipação”, defendida pelos militares no final dos anos 1970, o que motivou forte resistência dos povos indígenas e da sociedade civil. Preocupadas com o processo de militarização e enfraquecimento da Funai, e com os contínuos ataques aos direitos indígenas, as organizações abaixo assinadas repudiam publicamente a criação do referido GT e exigem sua imediata revogação.