Desde a titulação pioneira da Terra Quilombola Boa Vista, no Pará, em 20 de novembro de 1995, apenas 163 terras foram tituladas. 92,5% das famílias quilombolas no Brasil ainda esperam que o governo garanta a efetividade do direito assegurado na Constituição Federal
*Atualizado às 18h50 de 19/11/2015
Comunidade Boa Vista recebe a Procuradora Ela Wiecko e a equipe do Incra em 1994 para discutir a titulação de suas terras Foto: Lúcia Andrade |
Amanhã (20/11), Dia Nacional da Consciência Negra, os quilombolas da Comunidade Boa Vista, do município de Oriximiná, no interior do Pará, celebram os 20 anos da titulação de sua terra. Foi a primeira ser titulada no Brasil, sete anos após a Constituição Federal reconhecer o direito dos quilombolas à propriedade de suas terras através do artigo 68 do ADCT.
A conquista foi grande e significativa. A partir do momento que é titulada podemos dizer que a terra é nossa e ninguém vai nos tirar, a terra de onde podemos trabalhar e tirar nosso sustento e criar nossos filhos e sem risco de ser ameaçado e despejado”, explica Claudinete Colé de Souza, moradora da Boa Vista e integrante da coordenação da ARQMO – Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná.
A busca pela regularização da terra pelos quilombolas de Oriximiná iniciou-se um ano após a promulgação da nova constituição e houve muita mobilização e pressão até a obtenção do primeiro título. “O processo começou pela ARQMO que fundamos para a defesa de nossas terras. A gente era humilhada pela Mineração Rio do Norte. A ARQMO descobriu um pouco dos nossos direitos e corremos atrás. Então, a gente fez um pico comunitário com várias comunidades e quando a empresa soube, chamou o Incra para titular as terras tudo individual e a gente não concordou. A gente conversou na ARQMO e não concordou com o individual, nós já tínhamos acionado o Incra de Brasília e queríamos o título do coletivo. Demorou, mais foi titulada” relembra Zuleide Viana dos Santos, liderança da Boa Vista, e integrante do Conselho Diretor da ARQMO.
A conquista dos quilombolas de Oriximiná são um marco na luta dos remanescentes e firmou dois importantes precedentes jurídicos, explica Lúcia Andrade, coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo, organização que apoiou os quilombolas na mobilização que resultou nessa titulação pioneira: “essa primeira titulação consolidou a interpretação que o artigo 68 do ADCT é autoaplicável, não dependendo de regulamentação para sua efetivação, questão que era controversa naquela época. Além disso, confirmou o entendimento que a titulação das terras quilombolas deveria ser coletiva”
20 anos depois, a efetividade do artigo 68 permanece como um desafio
A titulação de Boa Vista ocorreu sete anos após a Constituição Federal reconhecer o direito dos quilombolas à propriedade de suas terras. Desde então, a lentidão nas titulações permanece. Assim além de Boa Vista, são poucas as comunidades quilombolas que podem contar com a segurança da terra titulada. Segundo levantamento da Comissão Pró-Índio de São Paulo, são apenas 252 comunidades vivendo em 163 terras quilombolas tituladas. Um número extremamente limitado tendo em vista os mais de 1.500 processos em curso no Incra para regularização de terras quilombolas e outros tantos que tramitam nos órgãos estaduais.
Nas 163 terras, que somam 755.847,272 hectares, vivem 16.095 famílias – o que representa somente 7,5% das 214 mil famílias que a SEPPIR estima ser a população quilombola no Brasil. A maior parte das terras quilombolas foram tituladas pelos governos estaduais, em um total de 132 titulações. Porém, elas estão concentradas no Pará e Maranhão, onde esses governos foram responsáveis por titular 49 e 52 terras, respectivamente. O governo da presidenta Dilma Rousseff titulou 16 terras, 15 delas apenas parcialmente. A dimensão regularizada por Dilma soma cifras bem modestas: apenas 11.636 hectares.
“O que esses números demonstram é que, ao longo de duas décadas, o governo federal e os governos estaduais não construíram e consolidaram uma política efetiva de regularização fundiária das terras quilombolas, com metas, equipe técnica e orçamento compatível com a demanda. Pelo contrário, os procedimentos foram tornando-se cada vez mais burocratizados, deixando as comunidades vulneráveis enquanto aguardam a titulação” avalia Otávio Penteado, assessor de programas da Comissão Pró-Índio de São Paulo, organização que, desde 2004, monitora o andamento dos processos de titulação em todo Brasil.
Atualmente, 10 dos 24 estados brasileiros onde se reconhece a presença de comunidades quilombolas têm políticas ou programas voltados para a regularização fundiária de suas terras. Entretanto, além do Pará e Maranhão, apenas a Bahia e São Paulo possuem atuação mais contínua na titulação de terras, outros estados as regularizaram de forma esporádica e pontual.
2015: apenas 9 terras tituladas
O ano de 2015 não mostrou cenário diferente: apenas 9 terras quilombolas foram tituladas até 19 de novembro. Sete pelo governo federal, através do Incra, e duas pelo governo do Pará, por meio do Instituto de Terras do Pará.
Entre as sete terras regularizadas pelo Incra, encontram-se a de Marambaia, localizada em Mangaratiba, no Rio de Janeiro, e Kalunga, dos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresinha do Goiás, em Goiás, que recebeu seus 2 primeiros títulos de propriedade. Já o Instituto de Terras do Pará regularizou as terras das comunidades Castanhalzinho e Cutuvelo, ambas localizadas no município paraense de Garrafão do Norte.
A titulação de Marambaia tornou-se possível com o acordo firmado em novembro de 2014 entre os quilombolas e a Marinha. Desde a instalação de base da marinha na ilha de Marambaia, em 1980, os quilombolas enfrentavam dificuldades para permanecer em seu território. O Termo de Ajustamento de Conduta assinado pela associação quilombola, a Marinha, Incra e Ministério Público Federal pôs fim aos anos de conflito, mas resultou em drástica redução da terra quilombola: dos 1.638,0231 hectares identificados pelo Incra em Relatório Técnico de Identificação e Delimitação de 2006, apenas 52,99 hectares foram titulados e em seis áreas descontínuas – cinco para moradia e uma para “manifestação cultural e religiosa”, onde é vedada a construção de casas.
Em 2015, foram assinados 10 Decretos de Desapropriação, publicadas 10 Portarias de Reconhecimento e 26 RTIDs. O número de processos no Incra que ainda não ultrapassou a fase inicial de identificação do território a ser titulado é significativa: 88% do total processos.
Em muitos casos, tem sido necessária a atuação do Ministério Público Federal para destravar o andamento dos processos. Foi ocorreu no caso da comunidade Rincão dos Negros (RS), que só teve o RTID de sua terra publicado pelo Incra em maio deste ano, após decisão judicial determinando que o órgão desse prosseguimento ao processo de titulação. O relatório encontrava-se a mais de um ano pronto e aprovado e não havia motivos que obstassem sua publicação. Decisões semelhantes beneficiaram comunidades quilombolas no Amapá e Pará em 2015.
Direitos Ameaçados – PEC 215
A titulação de terras quilombolas pode ser ainda mais comprometida caso seja aprovada a Proposta de Emenda Constitucional 215 que altera o Artigo 68 do ADCT da Constituição Federal e determina que as terras quilombolas sejam regularizadas por meio de Lei. Isso significa que a titulação de terras quilombolas passaria também a ser atribuição do Poder Legislativo. A aprovação da PEC 215 seria mais um obstáculo para que os mais de 1.500 processos abertos no Incra venham a ser concluídos.
Entrevistas e redação: Bianca Pyl
Edição: Otávio Penteado e Lúcia M.M. Andrade
Os dados apresentados no presente texto foram levantados, sistematizados e analisados no âmbito do Monitoramento Comunidades Quilombolas e Direitos Territoriais desenvolvido pela CPI-SP implementado com o apoio financeiro de Christian Aid e ICCO. A reprodução total ou parcial do conteúdo e das imagens deste sítio é incentivada, desde que citada a fonte e sem fins lucrativos.
Coordenação Monitoramento: Lúcia M.M. Andrade
Equipe de pesquisa: Otávio Penteado, Carolina Bellinger e Pedro Caíque L. do Nascimento