Direito constitucional à demarcação de terras é questionado por cortes orçamentários e comentários de políticos ligados ao governo Temer
A ascensão de Michel Temer ao Planalto em 2016 trouxe uma onda de confiança aos setores conservadores do Congresso. Sem Dilma Rousseff, haveria menos resistência no governo para pautas restritivas de direito. O clima é tão favorável que diversos políticos perderam qualquer pudor em suas declarações. Em poucos meses, os direitos de quilombolas e indígenas foram alvejados discursivamente por diversas figuras políticas que gravitam em torno de Michel Temer.
O ministro da Justiça, Osmar Serraglio, afirmou que “terra não enche a barriga”. Indicado ao cargo pelo PSC, o presidente da Funai, Antônio Costa, disse ser necessário “ensinar os índios a pescar” e inseri-los no “sistema produtivo nacional”. Processado posteriormente por crime de racismo pelo Ministério Público Federal, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) insinuou que populações quilombolas não trabalham e que gasta-se “1 bilhão de reais” com eles.
Os comentários são, segundo entidades ligadas aos direitos dessas populações, sintomáticos da disputa pela demarcação de terras dos dois grupos minorizados e dos interesses dos ruralistas em colocar esse direito em xeque.
“A terra é essencial para fazer as demais políticas para essas populações avançarem. E esse direito básico, garantido pela Constituição de 1988, está sob ataque”, diagnostica Otávio Penteado, da Comissão Pró-Índio de São Paulo.
A Constituição de 1988, muito por conta de pressões do movimento negro, reconhece a dívida histórica do Estado brasileiro com as populações indígenas e quilombolas. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) afirma: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Só 165 comunidades possuem, no entanto, títulos emitidos. Outras 1.525 ainda aguardam a titulação. Há comunidades quilombolas em 24 estados, a maior parte no Maranhão, Bahia, Pará, Minas Gerais e Pernambuco. Os únicos sem ocorrências destas comunidades são o Acre e Roraima, além do Distrito Federal.
Apesar da garantia constitucional, a reparação caminha, há muito, a passos lentos. Em 2016, houve apenas uma titulação.
Os avanços obtidos pelo Brasil nos últimos anos, como a saída do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas, não atingiram com a mesma intensidade as populações quilombolas e indígenas. Relatório divulgado pelo Ministério do Desenvolvimento Social em 2013 revela que 55,6% dos adultos residentes em comunidades quilombolas vivem com fome ou sob risco de inanição.
A mesma realidade se reproduz na população infantil, com 41,1% das crianças na mesma condição. Foi constatada também grande vulnerabilidade social em índices como o acesso à água encanada, presente em menos da metade de domicílios, saúde e educação. Estima-se que há ao menos 214 mil famílias quilombolas no Brasil.
“Eles ficaram para trás”, diz Penteado. Nesse sentido, pontua, “informações” como a divulgada pelo deputado Jair Bolsonaro, de que o Estado gastaria 1 bilhão de reais por ano com as comunidades quilombolas, ajudam a dificultar ainda mais a situação. “Ele veicula essas ‘informações’ como se essas populações recebessem do Estado brasileiro tudo o que elas precisam. Quando, na verdade, é o contrário. O direito à terra é apenas tecnicamente reconhecido”, constata.
Segundo Penteado, dos 1,5 mil processos de titulação parados no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 80% deles estão na fase inicial de registro, que engloba o esforço de pesquisas, relatórios antropológicos, levantamentos cartográficos, entre outros. “Todo esse levantamento científico é caro, pois envolve viagens e estudos para embasar os relatórios. Isso exige recursos factíveis com a demanda de trabalho que precisa ser feito”, afirma.
O orçamento deixa isso claro. Em 2010, segundo informações do Portal do Orçamento, do governo federal, as ações que afetam diretamente as comunidades remanescentes de quilombos receberam financiamento de R$32,6 milhões da União. O dinheiro vai para ações que promovam a cultura afro-brasileira, as comunidades tradicionais e o programa Brasil Quilombola. Outra ação prevista, a gestão da política de desenvolvimento agrário, em 2010, teve orçamento zero naquele ano.
Além disso, houve um corte importante para 2017 do financiamento da política de titulação de terras. A proposta enviada ao Congresso prevê 4,1 milhões de reais para esta rubrica, ante 8 milhões de reais designados para a atividade em 2016.
Além disso, a competência de delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos foi transferida pelo governo de Michel Temer do extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário para a Casa Civil. O receio é que, com a mudança, o andamento dos processos fique ainda mais vulnerável às pressões políticas.
Para Ronaldo dos Santos, coordenador-executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Rurais Negras Quilombolas (Conaq), um dos maiores obstáculos para o avanço das políticas de titulação de terras é a atuação da bancada ruralista no Congresso Nacional. “São eles que não deixam que a pauta avance. E eles dominam o Congresso atualmente”, diagnostica.
“Um dos argumentos utilizados pelos ruralistas é que o percentual de terras dedicados aos indígenas e quilombolas inviabilizam o projeto de desenvolvimento nacional. Esse discurso nega a nossa nacionalidade, afinal, estamos falando de cidadãos brasileiros também”, critica.
Se nos governos anteriores faltava vontade política, no contexto atual há uma atuação contrária da esfera federal, tanto para os indígenas quanto para os quilombolas. Caso o cenário continue se agravando, a tendência é que a violência, em especial no campo, contra esses povos continue aumentando.
Em 2016, 61 pessoas foram assassinadas em decorrência de conflitos no campo. Desses, 13 assassinatos vitimaram indígenas e outros quatro eram quilombolas, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra.
“São várias ações que mostram que realmente há uma política contrária a um direito básico, que é o direito à terra. É ele que tem sofrido mais ataques. Quando o ministro da Justiça fala para os indígenas que “terra não enche barriga”, isso questiona o direito básico delas, que é o direito à terra”, diz Penteado.