Na véspera do Dia da Consciência Negra (20/11), a Comissão Pró-Índio divulga mais um balanço “Terras Quilombolas”. Durante 2021, somente governos estaduais entregaram títulos
O governo de Jair Bolsonaro não titulou um centímetro sequer de Terra Quilombola em 2021 – pelo menos até o momento (19/11). Esse é o dado que salta à vista no balanço anual do Observatório de Terras Quilombolas da Comissão Pró-Índio de São Paulo.
A se confirmar esse cenário, Bolsonaro será o primeiro presidente brasileiro sem titular sequer uma Terra Quilombola por dois anos consecutivos – a contar desde que as titulações começaram, em 1995, quando foi reconhecida a Terra Quilombola Boa Vista, em Oriximiná (PA). O presidente caminha, assim, para cumprir sua promessa de campanha feita em 2018: “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”.
“A promoção do direito dos quilombolas à propriedade de seus territórios já enfrentava enormes desafios nos governos anteriores. Porém, o cenário se agravou muito no Governo Bolsonaro. É a primeira vez que temos um presidente que reiteradamente questiona os direitos das comunidades quilombolas a despeito do que garante a Constituição Federal”, avalia a coordenadora adjunta da Comissão Pró-Índio de São Paulo, Carolina Bellinger.
Biko Rodrigues, articulador nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) aponta as consequências desse cenário “A lentidão coloca as comunidades quilombolas numa situação de extrema vulnerabilidade, uma vez que a maioria do território de uma comunidade não está sob domínio dela, mas de terceiros, muitas vezes fazendeiros.” E enfatiza os riscos: “A não execução dessa política coloca a comunidade em vulnerabilidade alimentar, jurídica, política, e ameaçando até de morte nossos companheiros e companheiras.”
Piauí e Tocantins titularam cinco Terras Quilombolas em 2021
Dois governos estaduais regularizaram Terras Quilombolas em 2021. O Piauí foi o principal deles, com quatro titulações: as terras Marinheiro, Vaquejador, Queimada Grande e Riacho Fundo. Os títulos expedidos pelo estado beneficiaram 419 famílias quilombolas.
A outra titulação aconteceu no Tocantins. As 174 famílias quilombolas de Barra do Aroeira foram beneficiadas com a titulação parcial de seu território. Foram regularizados 912 hectares por meio de títulos concedidos pelo Instituto de Terras do Tocantins (Itertins). É a primeira vez que o governo de Tocantins titula uma Terra Quilombola.
Com as titulações ocorridas até 18 de novembro de 2021, somam 192 as Terras Quilombolas já regularizadas no Brasil. Desse total, 147 foram tituladas por governos estaduais, 40 pelo governo federal, 4 por governos estaduais em conjunto com o federal e apenas uma foi regularizada por um governo municipal.
Terras quilombolas podem ser tituladas pelo governo federal, governos estaduais e municipais. Os títulos ainda podem ser emitidos de forma combinada com Estados e municípios.
O número de terras regularizadas em 2021 pode subir, uma vez que o governo do Pará anunciou a entrega de títulos a três comunidades quilombolas no dia 20 de novembro.
Estagnação das titulações vulnerabiliza comunidades quilombolas
As Terras Quilombolas já regularizadas (192) representam um universo ínfimo se comparado aos 1.779 procedimentos que tramitam no Incra, além daqueles que seguem nos órgãos estaduais. E os procedimentos evoluem lentamente. Apenas 16% das Terras Quilombolas processos abertos no Incra tiveram seu Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado. Esse documento, uma das etapas previstas no processo de titulação de terras, identifica os limites e a extensão do território quilombola.
Sem a titulação, que oficializa a posse coletiva de suas terras, e sem o RTID para ao menos definir perante o Estado os limites dos territórios, uma grande quantidade de mulheres e homens quilombolas ficam ainda mais vulneráveis a pressões e violências diversas. José Carlos Galiza, liderança quilombola e assessor da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), afirma que é notável um aumento da violência contra os quilombolas durante o governo Bolsonaro. “A violência contra os territórios aumentou sim. Ela já existia antes do Bolsonaro, da pandemia, mas houve um avanço muito grande. Aquela história de deixar passar a boiada fez efeito, e as comunidades vêm sofrendo muita violência”.
Incra: servidores pressionados
A postura do governo federal contrária aos direitos quilombolas se faz sentir junto aos servidores do Incra, órgão responsável pelas titulações de terras quilombolas a nível federal. Em agosto de 2021, servidoras e servidores do Incra denunciaram os esforços do órgão para travar o processo de titulação do Terra Quilombola Morro Alto, no Rio Grande do Sul.
Uma auditoria interna aberta em 2019, a pedido do Deputado Federal Alceu Moreira (PMDB/RS), foi usada para paralisar a regularização do território após a publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), ainda que a análise de setores técnicos e jurídicos do Incra já houvesse concluído “pela inexistência de vícios que pudessem invalidar o RTID”, segundo a nota publicada pelos servidores.
A auditoria afeta o andamento de diversos processos que seguem no aguardo da análise da Auditoria Interna. Como observam os servidores do Incra, tal procedimento “não faz parte dos normativos vigentes que trata de regularização fundiária de quilombos”. E destacam que os pareceres emitidos pela Auditoria Interna “não dialogam com a legislação vigente, os conhecimentos técnicos e conceitos teóricos metodológicos.”
Quilombolas seguem resistindo
E o que é possível fazer diante desse cenário de estagnação nas titulações de terras quilombolas? Para Biko Rodrigues, da Conaq, parte da resposta está na organização das comunidades, para reivindicar coletivamente o seu direito a um território regularizado e seguro. “Temos que buscar nos fortalecer enquanto organização, na defesa de nossos territórios. Acho que é imprescindível retomar os trabalhos de base e fortalecer o conjunto dessas reivindicações”, afirma.
É importante, ele ressalta, que, mesmo num momento difícil como o atual, as comunidades continuem recorrendo aos instrumentos institucionais disponíveis para dar força e repercussão às suas demandas. “Há instituições com quem ainda conseguimos dialogar, como o Ministério Público. É importante [recorrer a elas] para que as denúncias que fizermos aqui ecoem para o resto do mundo.”
E, se no governo Bolsonaro, um avanço das políticas governamentais em favor dos quilombolas parece pouco provável, é importante não desanimar e seguir trabalhando para que, numa administração futura, as titulações voltem a acontecer. “Temos buscado, mesmo durante a pandemia, fortalecer nossos laços. Fortalecer a nossa base para que no futuro mais próximo possível a gente tenha uma correlação de forças melhor, para mudar esse cenário e fazer com que de fato a retomada da demarcação dos territórios aconteça”, diz o articulador da Conaq.
Foto: Carlos Penteado.
Texto: Rafael Faustino
Edição: Flávia Vieira e Luiza Barros
Artes gráficas: Irmãs de Criação
Foto: Carlos Penteado
Pesquisa: Carolina Bellinger, Luiza Barros, Julia Gibertoni Leite e Isadora Fávero